Crédito, Reprodução/Redes Sociais/@freigilson_somdomonteLegenda da foto, Frei Gilson virou alvo de críticas da esquerda e de apoio da direita após pregação em que defendeu que a mulher deve exercer o papel de “auxiliar” dos homensArticle informationO sol ainda não havia despontado no horizonte naquele dia 25 de julho de 2021 quando um sacerdote católico iniciou, em tom grave, sua oração. O local da reza havia sido escolhido com precisão. Ele estava no mezanino da Torre de TV de Brasília, um dos pontos mais conhecidos da capital federal. Junto com ele, pelo menos 30 mil pessoas o acompanhavam. A oração era transmitida em tempo real pelas redes sociais de quem comandava o ritual: frei Gilson.Com a voz séria, ele anunciava o início de uma jornada de três dias de orações pelo Brasil. “Vamos batalhar. Nós vamos orar e vamos clamar as poderosas bençãos de Deus e a intercessão de Nossa Senhora pela nossa pátria, pelo nosso Brasil”, disse.A oração tinha contornos patrióticos e era feita em um púlpito improvisado com uma mesa coberta por uma grande e visível bandeira do Brasil. Sobre ela, havia uma estátua de Nossa Senhora Aparecida, padroreira do país. Ao fundo, já era possível ver a Esplanada dos Ministérios e o icônico prédio do Congresso Nacional.Com o sol já raiando, frei Gilson começa a fazer os encaminhamentos finais. Ele faz pedidos contra a prática do aborto, a desestruturação da família e o abuso de poder por autoridades. Em seguida, complementa.”Não permitais Senhora e rainha de Nazaré que os erros da Rússia venham assolar o Brasil como bem afirmou Nossa Senhora em Fátima”, disse frei Gilson.”Livrai-nos Mãe de Deus do flagelo do comunismo”, completou frei José Lucas. À época, frei Gilson já era um dos clérigos brasileiros mais conhecidos nas redes sociais, mas sua pregação anticomunista não chamou atenção.Foi somente na semana passada que o sacerdote, que tem mais de sete milhões de seguidores no Instagram e outros 1,4 milhão em um canal de WhatsApp, “furou a bolha” católica e virou personagem de mais um capítulo do embate entre esquerda e direita no Brasil.Em uma oração transmitida pelas redes sociais, ele criticou o empoderamento feminino e defendeu que as mulheres devem atuar de forma auxiliar aos homens.”Essa é uma fraqueza da mulher: ela sempre quer ter mais. ‘Eu não me contento só em ser… em ter qualidades normais de uma mulher. Eu quero mais’. Isso é ideologia dos mundos atuais. Uma mulher que quer mais… vou até usar a palavra que vocês já escutaram muito: empoderamento”, disse.Pouco depois, ele complementou. “O homem, foi dado a ele a liderança, mas a mulher tem o desejo de poder. Não é desejo de serviço, é desejo de poder. Repito a palavra: empoderamento. Portanto, eu já começo a falar: a guerra dos sexos é ideologia pura, é diabólica. Para curar a solidão do homem, Deus fez você [mulher]. Ela nasceu para auxiliar o homem”, disse.A reação nas redes sociais foi intensa. Militantes de esquerda criticaram frei Gilson alegando que ele seria ligado a uma produtora de conteúdo conhecida pelo conteúdo conservador e de que fosse vinculado ao bolsonarismo.Do outro lado, ele foi defendido por alguns dos principais nomes da direita como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG). O deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) chegou a propor um projeto de lei que criminaliza ataques religiosos em redes sociais. A polêmica fez com que as buscas pelo nome de frei Gilson no Google, principal ferramenta de busca, tivessem um pico na quarta-feira (12/3).A BBC News Brasil entrevistou parlamentares e especialistas nas relações entre a religião e política para entender os motivos que levaram à polêmica em torno de frei Gilson e como lideranças como ele entraram no radar da disputa política no país.A reportagem também enviou questões à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), principal entidade da Igreja Católica no país. A CNBB, no entanto, não respondeu às perguntas enviadas e recomendou acionar com a diocese de Santo Amaro para contatar frei Gilson. A reportagem da BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de frei Gilson, mas ela informou que o sacerdote não poderia responder às perguntas enviadas até o fim da quaresma. Crédito, Reprodução/Redes SociaisLegenda da foto, Frei Gilson durante pregação em Brasília, em 2021, em que pediu proteção contra o comunismo no Brasil”Clérigo influencer”O nome completo de frei Gilson é Gilson da Silva Pupo Azevedo. Ele tem 38 anos e, aos 18, ingressou na vida religiosa. É membro da Ordem Carmelita Mensageiros do Espírito Santo, em Nova Almeida (ES).Há quase 10 anos, ele passou a usar redes sociais e plataformas como o YouTube para transmitir missas e orações. Na última década, ele se tornou uma das principais lideranças católicas do Brasil nas redes sociais.Com sete milhões de seguidores no Instagram, ele fica atrás de outras figuras conhecidas do catolicismo brasileiro como o padre Fábio de Melo, com 26 milhões de seguidores, e o padre Marcelo Rossi, com 10,6 milhões. No YouTube, seu canal tem 6,72 milhões de inscritos. Além disso, ele também aparece como uma espécie de “garoto propaganda” para lojas de artigos religiosos e para pacotes de viagens ou retiros com temáticas católicas. Na plataforma de streaming de música Spotify, frei Gilson tem uma média de 1,4 milhão de ouvintes mensais. Valor semelhante aos 1,43 milhão do padre Marcelo Rossi e mais que o dobro dos 683 mil ouvintes mensais de Fábio de Melo.Frei Gilson e Marcelo Rossi, aliás, têm em comum a passagem pela Diocese de Santo Amaro, em São PauloSua popularidade nas redes sociais vem arregimentando milhões de fiéis durante suas transmissões, especialmente em períodos como a quaresma. Transmissões de frei Gilson chegaram a ser assistidas por quatro milhões de pessoas. Tudo isso em meio a um contexto de encolhimento do número de católicos no Brasil. Segundo o Instituto Datafolha, o percentual de brasileiros que se identificavam como católicos caiu de 75% em 1994 para 51% em 2022.O professor de Antropologia da UFRJ e do programa de pós-graduação da Unicamp, Rodrigo Toniol, é um especialista nos estudos de religião no país e diz que frei Gilson é uma liderança católica relevante há quase 10 anos.”Frei Gilson é uma liderança que eu classificaria como ‘histórica’. Ele ficou muito conhecido durante a pandemia, assim como outros sacerdotes católicos que, naquele período, começaram a usar mídias sociais para fazer orações com a comunidade”, disse.A doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) Tabata Tesser é especialista no estudo da religião católica no Brasil e diz que frei Gilson seria resultado de um movimento organizado pela Igreja voltado a ampliar sua presença junto ao público. Esse movimento consiste no lançamento de figuras como ele, classificada por ela como “clérigo influencer”.”Frei Gilson é fruto de um investimento no que a gente vem chamando de clérigos influencers, que são essas lideranças religiosas que fazem um investimento nas redes sociais para traduzir uma determinada teologia. Neste caso, uma teologia moral situada no conservadorismo”, disse Tesser.Para a pesquisadora, frei Gilson é parte do que ela classifica como a “nova geração” de clérigos influencidores. A primeira geração teria sido composta por nomes conhecidos como Marcelo Rossi.”A gente tem uma lembrança forte do padre Marcelo Rossi e do papel que ele cumpria. Também temos a TV Aparecida e o catolicismo sertanejo. Houve, no passado, um investimento muito grande na área musical. Trata-se de padres que usaram a estrutura midiática para alcançar novos públicos”, explicou Tesser.Religião e políticaA polêmica em torno de frei Gilson na semana passada fez com que as posições políticas do sacerdote passassem a ser questionadas. Parte das críticas feitas a ele por internautas de esquerda eram de que ele seria um religioso bolsonarista.A BBC News Brasil analisou dezenas de pregações transmitidas pelo sacerdote nos últimos anos e não encontrou menções diretas ou demonstração de apoio a Jair Bolsonaro.Apesar disso, em diversas dessas pregações, frei Gilson defende bandeiras conservadoras semelhantes às do bolsonarismo.O sacerdote deu declarações, por exemplo, que são contrárias à prática do aborto e à homossexualidade.”A Bíblia diz que (a homossexualidade) é uma depravação grave. Não fui eu que criei isso. É palavra de Deus. É a palavra escrita por Deus e não por homens”, defendeu frei Gilson durante uma entrevista a um podcast, em julho do ano passado.No dia 7 de outubro de 2022, após o primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil, frei Gilson usou sua fala durante uma missa para alertar os católicos sobre a situação política na Nicarágua, país governado por Daniel Ortega, até então próximo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).Durante o período eleitoral no Brasil, a situação na Nicarágua e a proximidade entre Ortega e Lula foi alvo de questionamentos.”Emissoras católicas sendo fechadas. Porque tem gente que fala assim: ‘Isso é teoria da conspiração. Nunca vai acontecer isso. Isso aqui não existe’. Não existe? (Não existe) até que alguém sente na cadeirinha e tenha o poder na mão e aí você vai ver o que é que é. (Alguém) Cheio de doideira na cabeça, com o diabo no coração e aí você vai ver o que é possível acontecer”, disse o sacerdote.Outro ponto mencionado por militantes de esquerda foi o fato de que o nome de frei Gilson aparece nas investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado supostamente liderada por Bolsonaro.De acordo com a PF, frei Gilson recebeu uma oração via mensagem de texto do padre José Eduardo de Oliveira e Silva, que chegou a ser indiciado nas investigações, mas não foi denunciado. Segundo a PF, o padre enviou a oração a frei Gilson e pediu que ele repassasse o conteúdo apenas a pessoas de “estrita confiança”.Compartilhado no dia 3 de novembro de 2023, o texto pedia a católicos e evangélicos que incluíssem os nomes do então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e de outros 16 generais quatro estrelas em suas orações.No relatório, o texto ficou conhecido como “oração do golpe”.Apesar de ser citado, frei Gilson não foi indiciado. O relatório também não indica se o sacerdote atendeu ou não o pedido do padre José Eduardo de Oliveira e Silva.As críticas vindas da esquerda à sua pregação sobre o papel a ser desempenhado pela mulher fizeram com que até mesmo parlamentares deste campo tentassem diminuir os possíveis estragos políticos que isso poderia causar.”Não basta ser rejeitado pelos evangélicos, vamos fazer uma cruzada contra os católicos também, aí a gente se elege só com o votos dos ateus em um país em que quase 80 % da população é católica ou evangélica. Que tal?”, disse o parlamentar.Janones se referia à já conhecida preferência do eleitorado evangélico pelo ex-presidente Jair Bolsonaro refletida nas urnas nas eleições de 2018 e 2022. Do outro lado, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) saiu em defesa do religioso.”Frei Gilson cada vez mais se apresenta como um fenômeno em oração, juntando milhões pela palavra do Criador. Por isso, cada vez mais, vem sendo atacado pela esquerda”, disse o ex-presidente em suas redes sociais.Crédito, Cleia Viana/Câmara dos DeputadosLegenda da foto, Deputado federal André Janones pediu que militantes de esquerda parassem de criticar frei Gilson por temer reações negativas do eleitoradoErro de cálculoPara Rodrigo Toniol, seria errado qualificar frei Gilson como um religioso bolsonarista apenas por defender pautas como a luta contra o aborto ou a homossexualidade.”Ele é um religioso, então é óbvio que ele é contra o aborto e que vai ter falas restritivas sobre o casamento homoafetivo. É claro que, pra ele, o lugar da mulher está mais ou menos marcado. Isso tem mais a ver com o fato de ele ser um religioso do que com uma posição política”, disse a pesquisadora Tabata Tesser.Para Tesser, haveria uma precipitação no campo da esquerda e até mesmo entre alguns integrantes da comunidade acadêmica em classificar clérigos como frei Gilson dentro do campo bolsonarista.”Há setores da esquerda tentando pintar o padre Gilson como um frei bolsonarista, mas a esquerda não pode esquecer que é a própria Igreja Católica que, há quase uma década, vem investido nesse tipo de clérigo influencer”, disse.Para ela, analistas vêm procurando tratar os movimentos conservadores da Igreja Católica, que sempre existiram, da mesma forma como trataram o voto evangélico a partir das eleições de 2018, quando este segmento votou majoritariamente em Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais daquele ano.”O que vem acontecendo no caso do frei Gilson é que setores da esquerda tentam colocar uma culpa, que é um termo bem católico, sobre Frei Gilson como se esse conservadorismo fosse um fenômeno exclusivo do frei Gilson”, disse.Para a cientista política e diretora executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser), Ana Carolina Evangelista, frei Gilson se situaria no campo ultraconservador, mas não poderia ser considerado bolsonarista.”Ele é um religioso que se identifica mais com o campo ultraconservador na política. Não sei, porém, se eu o enquadraria como bolsonarista porque mesmo antes de Bolsonaro, já havia um aumento do ativismo ultraconservador católico”, afirmou.Para o presidente da Frente Parlamentar Católica, deputado federal Luiz Gastão (PSD-CE), é um erro classificar frei Gilson como um religioso bolsonarista.”O frei Gilson é católico apostólico romano. Ele defende Jesus Cristo e a palavra de Deus. Ele não defende nenhum lado político, mas na política, infelizmente, tudo está sujeito à polarização”, afirmou o parlamentar à BBC News Brasil.Segundo ele, frei Gilson tem o direito de defender suas pautas religiosas e não deveria ser constrangido por fazê-lo. O parlamentar diz que criticar o clérigo pode trazer prejuízos políticos.”Queremos garantir que a gente possa defender nossa fé e que nos seja assegurada a nossa fé […] Todos os que criticarem ou atacarem frei Gilson estão errando porque hoje ele representa a Igreja Católica”, disse.O deputado federal Padre João (PT-MG), em contrapartida, defendeu as críticas feitas a frei Gilson em sua pregação sobre as mulheres. O parlamentar é padre católico ordenado em 1995 e atuou na paróquia de São José Operário, em Ouro Branco, no interior de Minas Gerais.”É um equívoco enorme e até desrespeitoso quando colocamos a mulher como subalterna ou auxiliar. A mulher é uma criatura de Deus igual ao homem”, afirmou à BBC News Brasil.Na avaliação do parlamentar, o tom das críticas foi acertado, ainda que possa gerar prejuízos eleitorais.”Essa firmeza da crítica é acertada, agora, se formos olhar a tática eleitoral, é outra questão. Mas nem sempre a esquerda pensa na parte eleitoral. A gente também pensa no que é justo. O que não podemos é tolerar as injustiças”, disse.”Hoje, faz-se uma coisa e amanhã outra e depois temos o feminicídio porque, segundo esse discurso, estaríamos tratando de um ser inferior”, afirmou o parlamentar.Rodrigo Toniol disse que o que aconteceu com Frei Gilson nos últimos dias foi a sua transformação em uma espécie de símbolo da polarização entre esquerda e direita no Brasil.”Minha sensação é de que o debate que se produziu sobre ele é de que quer transformá-lo numa espécie de token (símbolo) político. Isso é perigoso do ponto de vista social e pobre do ponto de vista analítico”, disse.Para Tabata Tesser, parte da esquerda errou na forma como criticou frei Gilson e acabou favorecendo uma suposta narrativa recorrente da direita segundo a qual os cristãos estariam sob perseguição no mundo, inclusive no Brasil.”A extrema direita brasileira se constituiu, nos últimos anos, como uma direita cristã ancorada na chamada cristofobia, que é a ideia de que os cristãos estariam sendo perseguidos. O que aconteceu com frei Gilson, em alguma medida, dialoga com essa ideia da direita de dizer: ‘Não temos liberdade nem pra rezar o nosso terço ou fazer nosso culto às 4h da manhã'”, disse Tesser.
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