Crédito, ReutersLegenda da foto, Zelensky e Trump em discussão no salão oval da Casa BrancaArticle informationA reunião foi uma “armadilha” plantada por Trump que tinha um objetivo estratégico para as ambições do presidente americano, explica Joseph Nye, cientista político da Universidade Harvard, ex-Secretário Assistente de Defesa e ex-SubSecretário de Estado dos Estados Unidos.”Trump tem pouca influência sobre [o presidente russo Vladimir] Putin. Por isso, tem de intimidar Zelensky”, explica Nye, em entrevista à BBC News Brasil feita por videochamada a partir de sua casa na cidade de Boston.”Ele se vê como um grande fechador de negócios. Adoraria fazer acordos favoráveis a si mesmo diante de homens fortes como Putin. Seria como demonstrar quão bom ele é.”Nye é o criador do conceito de “soft power”, como batizou a capacidade dos países de persuadir outros a fazerem o que querem sem o uso da força, um instrumento consagrado pela diplomacia americana que vem sendo desgastado sob a liderança de Trump. “Trump não tem uma ideologia, ele é o que se pode chamar de personalista, como os caudilhos latino-americanos, se esforça para ser um líder carismático. Isso significa que ele é menos limitado por preocupações morais.”O episódio com Zelensky, que serviu de “pretexto” para Trump interromper o repasse de recursos militares e de informações de inteligência dos EUA aos ucranianos, é apenas mais um dos movimentos que presidente americano tem feito para transformar a política externa do país. Trump faz reiteradas ameaças de tarifas (algumas das quais já chegou a impor) e até de ação militar contra aliados como Panamá, México, Canadá e Europa. Como resultado, tem obtido uma série de concessões destes aliados, sob pressão.”Os ganhos são reais no curto prazo. A questão é: eles irão se manter a longo prazo?”, questiona Nye, para então completar:Nye avalia que Trump tem conseguido mobilizar os 40% da população do país que são isolacionistas e feito prevalecer uma visão de relações internacionais que é, na verdade, minoritária nos EUA. Para ele, tanto políticos e eleitores americanos, quanto lideranças estrangeiras subestimaram Trump ao tomá-lo como alguém que diz “coisas ultrajantes” em campanha, mas não as coloca em prática. “Não foi o que aconteceu”, diz Nye.Dizendo-se um “cauteloso otimista”, Nye diz que espera ver os movimentos de Trump fortalecerem a Europa como “ator central” na defesa da Ucrânia e do próprio continente, mas ressalta que os EUA ainda serão necessários como “salvaguarda nuclear”.Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.Crédito, BBC News BrasilLegenda da foto, O cientista político Joseph Nye diz que líderes estrangeiros subestimaram TrumpBBC News Brasil – Nas últimas seis semanas, as primeiras de seu novo governo, o presidente Donald Trump desmantelou a agência americana de auxílio internacional, a Usaid, ameaçou aliados na região, como México e Canadá, nos quais chegou a impor tarifas, e aos europeus, e vimos até uma discussão pública entre ele, o vice-presidente J.D. Vance, e o líder ucraniano Volodymyr Zelensky no Salão Oval. Como interpreta o que está acontecendo na política externa americana neste momento à luz destes acontecimentos recentes?Joseph Nye – Acho que Trump está tentando fazer grandes mudanças na política externa. É interessante que ele desvalorize a conexão europeia, que foi crucial para os EUA por 80 anos, e dê pouca ênfase à democracia ou à ideologia. Isso explica, acho, o bullying dele contra Zelensky na semana passada.Não acho que esse episódio na Casa Branca tenha sido um acidente, foi uma armadilha. Trump quer poder gabar-se de cumprir sua promessa de pôr um fim rápido à guerra. Ele tem pouca influência sobre Putin. Por isso, tem de intimidar Zelensky. O que Trump queria era pressionar Zelensky: ele já tinha descartado as moedas de troca da Ucrânia de adesão à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] ou de recuperação de território, mas acho que ele queria pressionar ainda mais Zelensky e, então, ter um pretexto para cortar a ajuda à Ucrânia, que era o próximo passo nesse processo de pressão sobre o país. Se você olhar para a maneira como o episódio se desenrolou, na maior parte do tempo, estava indo tudo bem na reunião, e, então, Vance basicamente jogou Zelensky para fora da pista, no momento em que as câmeras estavam ligadas, o que me faz pensar em uma armadilha.BBC News Brasil – Há uma famosa frase do ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger que diz que “pode ser perigoso ser inimigo dos EUA, mas ser amigo dos EUA é fatal”. A frase demonstra que esse tipo de crise não é exatamente nova. Esta é uma boa descrição para o momento?Nye – Acho que isso é um exagero. Por um lado, repare que metade do Partido Republicano de Trump ainda é atlantista [favorável a relações estreitas entre EUA e Europa], e o Partido Democrata é fortemente atlantista. Portanto, [a frase de Kissinger] pode ser uma boa descrição para o próximo ano ou dois, mas não acho que seja uma boa descrição a longo prazo. Acho plausível que os democratas retomem a Câmara dos Representantes em 2026 [onde republicanos têm uma pequena maioria agora], e quem sabe o que acontecerá na eleição presidencial de 2028? Estamos vendo o comportamento mais ultrajante de Trump nesta fase. Mas isso não significa que será algo bem-sucedido a longo prazo. Ainda há muitos valores compartilhados entre a Europa e a América.BBC News Brasil – Alguns analistas apontam para um sentimento de ressentimento de Trump contra aliados. E ele próprio tem expressado que “os aliados estavam se aproveitando” dos EUA. O que poderia explicar isso? Nye – Trump tem essa visão, e ela é compartilhada provavelmente por 30 ou 40% do público americano. O Chicago Council on Foreign Relations tem feito sondagens desde 1974, perguntando aos americanos se os EUA devem ter uma política externa voltada para o exterior ou se devemos nos concentrar nos nossos problemas internos. Dois terços do público americano foi basicamente internacionalista durante todo esse período. Mas um terço tem sido basicamente isolacionista e Trump é capaz de mobilizá-los através da parte MAGA [Make America Great Again, ou Torne os EUA grande de novo] do Partido Republicano. E, como ameaça as pessoas [do partido] que se opõem a ele com [desafios nas eleições] primárias republicanas, isso significa que a opinião dele, que é, como eu disse, uma visão minoritária, é capaz de prevalecer.BBC News Brasil – O senhor acha que a ideia de soft power, que já foi muito poderosa nos EUA nas últimas décadas, está em declínio atualmente?Nye – Soft power é a capacidade de obter o que você quer através da atração, em vez de coerção e pagamento. E ele aumenta e diminui. Durante a Guerra do Vietnã, os EUA perderam muito de seu soft power. O mesmo aconteceu com a Guerra do Iraque. Mas foi possível recuperá-lo em ambos os casos. Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2017, houve um declínio do soft power ou do poder de atração americano nos quatro anos seguintes por causa de suas políticas America First [EUA em primeiro lugar]. Vimos alguma recuperação sob Biden. E é provável que volte a cair nos próximos quatro anos.BBC News Brasil – Então o senhor acredita que um estrago ao soft power agora possa ser revertido mais tarde? Ou pode haver danos permanentes?Nye – Acho que já há algum dano real na confiança nos EUA entre aliados. Os aliados podem questionar que, mesmo com a volta dos democratas ao poder, quatro anos mais tarde podem entrar os republicanos e haver um movimento semelhante ao de agora. Então, isso é um dano duradouro. Por outro lado, muito do soft power americano não vem do governo, mas da sociedade civil, de Hollywood a Harvard. As pessoas querem assistir a filmes de Hollywood. Elas querem entrar em Harvard ou em universidades americanas em geral. Isso não vai ser prejudicado. Então, acredito em uma recuperação no soft power americano, mas acho que Trump deixará alguns danos reais ao longo do caminho.BBC News Brasil – Até agora, com sua estratégia, Trump parece estar obtendo ganhos em suas relações com aliados. Conseguiu recuos públicos dos ucranianos, o Panamá retirou a China de seus planos no Canal do Panamá, o México parece estar fazendo progressos na contenção do fentanil e na gestão da fronteira. Esses ganhos são reais e sustentáveis?Nye – Os ganhos são reais no curto prazo, porque os americanos têm o poder de coagir por causa do seu tamanho e da sua economia. Trump está usando esse poder coercitivo com sucesso para ganhos de curto prazo. A questão importante é: esses ganhos irão se manter a longo prazo? Se você usar a interdependência como uma forma de manipular um dos lados em uma negociação, o lado negociador irá capitular no curto prazo, mas ele também fará grandes esforços para reduzir sua dependência de você no longo prazo. Portanto, a resposta à sua pergunta depende se você está olhando para o curto ou longo prazo.Crédito, OLIVIER MATTHYS/EPA-EFE/REX/ShutterstockLegenda da foto, A Europa decidiu aumentar seus repasses para defesa do continente após movimentos do Trump de retirar apoio à UcrâniaBBC News Brasil – Quais são os resultados no longo prazo? No limite, poderia significar o fim da ordem mundial construída após a 2ª Guerra?Nye – Acho que há um enfraquecimento definitivo da ordem mundial. Se olharmos para a retirada dos EUA por Trump do Acordo de Paris sobre o clima, a retirada da Organização Mundial da Saúde [OMS] ou do Conselho de Direitos Humanos da ONU, ou a paralisação da Organização Mundial do Comércio [OMC]. Esses são aspectos do que é chamado de “século americano” ou a “ordem mundial americana” que foram enfraquecidos. Isso é um problema real. A questão é quanto tempo é “a longo prazo”? Se um democrata for eleito em 2029, voltar ao Acordo de Paris, à OMS e fortalecer a OMC e assim por diante, você não mais terá o grau de confiança que tinha no passado, por causa das incoerências dos americanos. Por outro lado, você terá algumas das instituições cruciais para a cooperação [global] restauradas. A resposta é que não sabemos. Mas acho que, se olharmos para a história, houve períodos de recuperação no passado, depois do Vietnã e do Iraque. Suspeito que haverá recuperação depois de Trump, mas ninguém sabe ao certo. Quando me perguntam se sou um otimista ou um pessimista em relação ao futuro, digo que tenho um ligeiro raio de otimismo cauteloso. Isso não é o mesmo que ter certeza.BBC News Brasil – Temos visto líderes estrangeiros que parecem ainda estar em choque ou surpresos com a abordagem de Trump, embora ele tenha deixado claro ao longo da campanha o que tinha em mente. Os líderes mundiais o subestimaram? Enxerga a possibilidade de que se organizem novamente deixando os EUA mais à margem?Nye – Todo mundo subestimou Trump. A visão geral era que ele diria essas coisas ultrajantes na campanha, mas depois passaria para o centro, um pouco como quando ele foi presidente pela primeira vez. Mas isso claramente não aconteceu. E isso não foi apenas uma avaliação errada feita por parte de líderes estrangeiros, mas também de muitos líderes e eleitores americanos. Agora, quanto à segunda pergunta, não consigo imaginar uma organização global com os EUA à margem. O país ainda é um quarto da economia mundial, provavelmente segue tendo posição dominante em termos de capacidade de organização e força militar globalmente. Com um país com esse grau de poder, não soa plausível vê-los à margem, mas pode ser que em diferentes regiões, como Europa e América Latina, surja uma organização regional mais eficaz. Estamos vendo isso agora com a questão de se os europeus serão capazes de melhorar os gastos com defesa e se organizar para poder sair em defesa da Ucrânia. Isso não coloca os americanos à margem, mas coloca a Europa de volta como um ator mais central da região.BBC News Brasil – O senhor acredita que os europeus têm condição de assumir o lugar que os EUA estavam ocupando na defesa da Ucrânia?Nye – Eles podem assumir muitos dos papéis, mas, na parte da logística e inteligência, eles ainda dependerão muito dos EUA. Como salvaguarda em um conflito nuclear, os americanos têm uma maior capacidade de dissuadir a Rússia [do que os europeus]. Por isso, embora eu espere que os europeus sejam bem-sucedidos em seus esforços para defender a Ucrânia, também espero que os EUA sigam sendo uma garantia e tenham um papel nesta segurança.BBC News Brasil – Trump passou a campanha presidencial dizendo que seria um presidente da paz. Ele baseia sua estratégia em relação ao conflito da Ucrânia supostamente nisto. Ao mesmo tempo, ele não descarta, por exemplo, usar as Forças Armadas contra aliados. Como conciliar os dois? Nye – Trump não tem uma ideologia, ele é o que se pode chamar de personalista, como os caudilhos latino-americanos, se esforça para ser um líder carismático. Isso significa que ele é menos limitado por preocupações morais. Acho que ele genuinamente não quer guerra, porque ele sabe que a guerra seria uma das coisas que poderiam destruir seu poder. Se olhar para o que aconteceu com George W. Bush, entrar na guerra do Iraque foi um grande erro, e Trump viu isso. Acho que ele percebe que ir para a guerra seria uma proposta muito arriscada.BBC News Brasil – Como o senhor explica essa admiração que Trump demonstra em relação a Putin e o líder chinês Xi Jinping, considerados adversários dos americanos?Nye – Trump se vê como um grande fechador de negócios. Adoraria fazer acordos favoráveis a si mesmo diante de homens fortes como Putin ou Xi, seria como demonstrar quão bom ele é.BBC News Brasil – Recentemente, um editorial do jornal americano The Wall Street Journal sugeriu que os movimentos de Trump em relação a Xi e Putin tinham a intenção de criar uma nova ordem global, dividindo o mundo em áreas de influências dos três países. O senhor concorda com esta interpretação?Nye – Talvez, mas eu acho que isso é uma leitura muito simples. Acho que Trump pode estar querendo separar a China e a Rússia, o que eu não acho plausível. Até por isso, uma divisão tripartite do mundo se torna improvável. Mas a verdade é que não tenho certeza se Trump tem uma estratégia clara.
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