‘Trump erra se pensa que vai alcançar a paz repartindo o mundo entre potências autoritárias’

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    Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Michael Ignatieff afirma que Donald Trump usa a provocação para atingir seus objetivosArticle informationAuthor, Juan Francisco AlonsoRole, BBC News MundoHá 30 minutosEm crise. É assim que está a ordem mundial unipolar que prevalece desde o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria no início da década de 1990.A posição dos Estados Unidos como única superpotência já não é questionada apenas por rivais como a China ou a Rússia, mas também dentro do próprio país.”Não é normal que o mundo tenha uma potência unipolar. Isso era uma anomalia, um produto do fim da Guerra Fria, mas finalmente vamos chegar a um ponto em que vamos ter um mundo multipolar, com potências em diferentes partes do planeta”, declarou o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, em uma entrevista no início de fevereiro.Será que a declaração do chefe da diplomacia americana é uma admissão de que os Estados Unidos estão dispostos a ceder parte do enorme poder de que desfrutam a outros atores globais? Como poderia ser essa nova ordem mundial?Para responder a estas e outras perguntas, a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com o historiador Michael Ignatieff, ex-candidato a primeiro-ministro do Canadá, ex-reitor da Universidade Central Europeia e vencedor do prêmio Princesa das Astúrias em ciências sociais em 2024.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Uma nova ordem multipolar está surgindo, possivelmente liderada por EUA, China e RússiaBBC News Mundo – Em seu segundo mandato, Donald Trump, com o seu desejo de assumir o controle da Groenlândia, recuperar o Canal do Panamá e anexar o Canadá, parece estar mostrando um lado imperialista nunca antes visto. De onde vem tudo isso?Michael Ignatieff – Trump é uma figura para a antropologia. Eu o considero um enganador. Ele é uma daquelas pessoas que vira tudo de cabeça para baixo para confundir e surpreender.É muito difícil saber se existe realmente uma estratégia por trás dos seus anúncios ou se são simplesmente um conjunto de improvisações com as quais ele busca obter alguns objetivos transacionais, dependendo da reação que haja.Certamente pode-se dizer que nas ações de Trump há elementos do clássico imperialismo ianque do século 19, mas acredito que há algo novo, e isso é a provocação. Ele vê o que pode obter com suas provocações e, por isso, acredito que se responderem a ele com força, como fizeram o Canadá e o México com as ameaças de tarifas, é possível fazê-lo retroceder.A Europa deveria fazer o mesmo. Trump já deixou claro que não quer mais defender a Europa Ocidental. Em vez de chorar e arrancar os cabelos, a Europa tem de enfrentar os fatos. A Espanha gasta 1,3% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em defesa. Não é suficiente.Durante 80 anos, nós demos como certa a proteção americana, mas agora ela está chegando ao fim. Então, não precisamos enlouquecer, simplesmente temos que nos defender.BBC News Mundo – Mas, nos últimos anos, muitos países europeus aumentaram seus gastos com defesa, e isso não parece satisfazer Trump e sua turma.Ignatieff – Vou dizer outra coisa que é muito impopular: não basta aumentar o orçamento da defesa. Também é necessário fazer com que mais jovens se alistem no serviço militar. Hoje, a herdeira do trono espanhol (princesa Leonor) está em um navio da Marinha prestando serviço militar, e talvez no futuro, daqui a 5 ou 10 anos, muitos espanhóis tenham que fazer o mesmo.O que eu acho absolutamente errado é permitir que Trump assuma o controle de nossas cabeças e nos impeça de reagir. Precisamos reagir, defender nossa soberania e independência nacional e usar os instrumentos que temos para promover nossos interesses.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Para o historiador, a reunião entre os EUA e a Rússia sobre a Ucrânia é o prelúdio de um acordo que vai sacrificar tanto o país invadido como os aliados europeusBBC News Mundo – Além de aumentar os gastos com defesa, você acha que os países europeus deveriam pensar em retomar o serviço militar obrigatório para acabar com a dependência dos EUA em termos de segurança?Ignatieff – Vou me tornar muito impopular entre o público da BBC News Mundo ao propor o serviço militar obrigatório na América Latina, na Espanha e no Canadá. O que estou dizendo é que não se trata apenas de aumentar os gastos com defesa, o que vai implicar em sacrifícios dolorosos em nossos gastos sociais. Também vamos precisar de mais pessoas dispostas a servir. Qualquer pessoa em sã consciência quer que isso seja feito voluntariamente, mas acho que não podemos excluir a possibilidade de recrutamento obrigatório.Vejamos o caso do Reino Unido. O primeiro-ministro (Keir) Starmer disse recentemente que queria enviar tropas britânicas para a Ucrânia, mas todos os especialistas militares disseram que o país não tem tropas suficientes. Países como a Espanha não só vão ter que aumentar seu percentual de gastos com defesa e reinvestir em suas indústrias militares, como também vão precisar de mais jovens para prestar serviço militar.O Canadá e outros aliados vão ter o mesmo problema. Os jovens relutam muito em prestar serviço militar, mas acho que essa é uma necessidade do novo mundo em que entramos.BBC News Mundo – Por que é que Trump está brigando com aliados como o Canadá e a Europa, ao mesmo tempo que se aproxima de rivais como a Rússia de Putin?Ignatieff – Esta é uma pergunta muito boa. Acho que há duas coisas em jogo. A primeira, e isso ficou evidente no discurso do vice-presidente (J.D.) Vance (na Conferência de Segurança de Munique, em que ele afirmou que a liberdade de expressão na Europa está sob ataque devido às medidas tomadas para conter a direita radical), é que esses revolucionários de direita radical que governam os EUA acreditam que seus antigos aliados — Canadá e Europa Ocidental — estão presos a uma espécie de liberalismo permissivo que eles já derrotaram dentro dos EUA, e agora querem derrotar em todo o mundo. E, por causa disso, de repente eles veem seus aliados como inimigos.O segundo problema está no cerne dos eleitores de Trump, que estão exaustos e desiludidos com as “guerras intermináveis”, com os desastres no Iraque e no Afeganistão. Esses eleitores acham que o país está voltando ao que vivenciou durante o Vietnã, aquela sensação de que seus jovens estão indo para o exterior para lutar batalhas sem sentido.E a este último deve ser acrescentado um elemento muito importante: a fadiga em relação ao custo do império, e o desejo de repassar essa conta para os aliados. “Europa, se você quiser nossa ajuda, vai ter que pagar por ela”.Os EUA estão cansados de suportar esses fardos econômicos, e o que estão fazendo com a Europa hoje, certamente vão fazer com a Ásia amanhã. Em breve, Trump vai se dirigir aos taiwaneses, sul-coreanos e japoneses, e dizer a eles: Por que estamos gastando tanto dinheiro para defendê-los? E assim vai ser com todos os sistemas de aliança que os EUA mantêm desde 1945.O mundo com o qual estávamos acostumados, em que os EUA forneciam bens públicos como segurança e liberdade, acabou — e não creio que vá mudar. Não acho que possamos esperar que Trump deixe a presidência para que Washington dê uma guinada. Acho que isso é permanente, é uma nova característica da política americana.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Ignatieff acredita que a Europa, o Canadá e outros antigos aliados dos EUA devem reconhecer que precisam aprender a se defender por conta própriaBBC News Mundo – Como você interpreta a declaração do secretário Rubio sobre um mundo multipolar? É o anúncio de que os EUA estão dispostos a compartilhar o poder?Ignatieff – Rubio admite que os EUA não querem ser o único garantidor da ordem no sistema mundial, mas se os EUA estão dispostos a compartilhar o poder, é outra coisa.Será que os EUA realmente querem compartilhar o mundo com a Rússia e a China? Não sei, há uma parte do eleitorado dos EUA que é muito hostil à China, por causa da inundação de produtos chineses baratos que prejudicam a produção americana.Acho que Trump está disposto a fazer as pazes com a Rússia e compartilhar o poder com eles, ao custo de trair os ucranianos. Mas acho que não está claro o que ele vai fazer com a China, porque os EUA têm um enorme déficit comercial com a China.Se Trump tomar a decisão estratégica de dividir o mundo com a China de Xi Jinping e a Rússia de (Vladimir) Putin e disser “os EUA ficam com a área da Groenlândia até o Chile, a China fica com o Leste Asiático, e a Rússia com a Eurásia”, isso seria revolucionário, e mudaria o mundo. Mas não acho que tenha tomado essa decisão.BBC News Mundo – Essa nova ordem mundial teria três atores. Na sua opinião, ela seria mais perigosa do que a bipolar que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, considerando que dois dos três centros de poder são liderados por governos ditatoriais?Ignatieff – Trump não se importa com o fato de (China e Rússia) serem ditatoriais. Não acha que, por serem ditatoriais, são mais ou menos perigosos. Ele acredita que pode fazer acordos com qualquer país, independentemente do tipo de regime.E também acredito que ele não tem afinidade com as democracias, pois já demonstrou que vê as coisas por uma lente econômica, sem exceções. Por exemplo, se os países latino-americanos tiverem um superávit comercial com os EUA, ele vai impor tarifas a eles, independentemente de se tratar da Venezuela autoritária de (Nicolás) Maduro ou do Chile democrático.Trump ignora que há uma enorme quantidade de pesquisas mostrando que as democracias não entram em guerra com outras democracias. Vladimir Putin invadiu a Ucrânia porque a Ucrânia é uma democracia, e a Rússia, não. Então, ele está cometendo um grave erro estratégico se achar que pode dividir o mundo com potências autoritárias e alcançar a paz.Se você conceder à China uma esfera de influência no Leste Asiático e der a ela carta branca, qual será o limite dessa área de influência? Por que parar em Taiwan? Pequim poderia pensar: bem, vamos para a Austrália ou para a Indonésia. A China é um país enorme e muito, muito poderoso.No entanto, quero deixar claro que não acredito que, se a Rússia alcançar a paz na Ucrânia, vai invadir imediatamente a Europa Oriental, ou que a China tenha pressa em tomar Taiwan ou desafiar as Filipinas. O que estou dizendo é que regimes como o russo e o chinês não são amantes da paz.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, A dependência da Ucrânia da ajuda militar americana torna o país vulnerável à pressão de TrumpBBC News Mundo – Como você acha que o mundo será dividido sob esta nova ordem tripolar?Ignatieff – Vladimir Putin quer claramente restabelecer a esfera de influência que a extinta União Soviética conquistou após a conferência de Yalta em 1945.Ele vai querer recuperar o quintal que tinha na Europa Oriental. No entanto, o problema é que agora a maior parte dos países que estavam nesse quintal estão na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) — Hungria, República Tcheca, Polônia e os países bálticos —, e a questão é se Trump vai respeitar os compromissos do Artigo 5 (defender qualquer país membro da Otan que seja atacado). Os russos querem que essa garantia desapareça.Se a proteção da Otan desaparecer, todos esses países (da Europa Oriental) vão voltar, mais cedo ou mais tarde, para a esfera de influência russa, e sua soberania e segurança nacionais serão comprometidas.BBC News Mundo – É por isso que a reunião entre os EUA e a Rússia sobre a Ucrânia, realizada na Arábia Saudita, fez disparar os alarmes na Europa.Ignatieff – Exatamente, os ucranianos entendem que, devido à sua dependência de equipamentos militares americanos, Trump pode forçá-los a aceitar um acordo que eles não querem aceitar.O que é sombrio nesses acordos é que Trump pode estar entregando a Europa Oriental à Rússia, do Báltico até o Danúbio e o Mar Negro, de modo que podemos ter uma nova Cortina de Ferro, e voltar à situação anterior a 1989. E isso vai ser uma receita para a instabilidade.BBC News Mundo – Por quê?Ignatieff – Você acha que os poloneses querem estar novamente sob a esfera de influência russa? Eles prefeririam morrer. Então, é um grande problema para a Europa.Os países da Europa Oriental enfrentaram a influência russa porque os americanos disseram: “Nós defenderemos vocês”. Bem, se os americanos não os defenderem mais, o mundo inteiro vai começar a entrar em colapso. Portanto, a suposição de que isso (forçar a Ucrânia a ceder às exigências da Rússia) compra a paz é uma loucura.Se Putin decidir subverter a democracia nos Balcãs e no Báltico, mais cedo ou mais tarde os disparos vão começar e pessoas vão morrer. Apaziguar Putin não é uma receita para a estabilidade e a paz. É uma receita para mais caos na Europa.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Ignatieff alerta para a possibilidade de uma nova Cortina de Ferro atravessar a EuropaBBC News Mundo – Por que é que a segurança europeia já não é uma prioridade para Trump? Será que ele esqueceu que os dois grandes conflitos globais do século 20 tiveram origem neste continente?Ignatieff – Ele não está nem um pouco interessado no que a história tem a ensinar (…) porque acha que a Europa foi tomada por um bando de liberais progressistas. Portanto, não se trata apenas de uma questão de custos econômicos, mas também de aversão ativa às sociedades e aos valores europeus.Se fosse apenas uma questão de recursos, acho que isso poderia ser resolvido. Se ele dissesse “Sigo comprometido com a defesa da Europa, mas vocês precisam gastar mais dinheiro”, os europeus buscariam o dinheiro. Mas o discurso de Vance revela outra coisa, porque ele não está dizendo apenas “não nos importamos com vocês”, ele também está dizendo “não gostamos de vocês”.BBC News Mundo – Mas a Europa é um importante parceiro econômico dos EUA, o comércio entre os dois representa 30% do total global.Ignatieff – Hoje, nos EUA, eles acham que a Europa é o passado (…) e acreditam que ela não tem nada a oferecer. Eles a veem como um mero concorrente e um fardo. Além disso, veem a Europa como tendo os valores errados, é liberal, progressista e secular.A combinação entre ideologia, economia e tecnologia me faz pensar que essa é uma postura de longo prazo, que não acho que vai passar quando a loucura de Trump for substituída na Casa Branca. Vance poderia ser o próximo presidente dos EUA e, então, seriam mais oito anos disso.BBC News Mundo – Trump disse que a guerra na Ucrânia é uma questão europeia, porque há um oceano no meio. Será que ele está disposto a entregar toda a Europa à Rússia?Ignatieff – Acho que não, e o motivo é que isso vai fazer com que ele pareça fraco. Tenho certeza de que ele quer fazer um acordo com a Rússia, e não teria nenhum problema em trair a Ucrânia, mas ele não pode assinar um acordo que o faça parecer fraco.Ele deve ter muito cuidado para fazer acordos em que saia vencedor, porque não quer que a opinião pública americana comece a dizer: “Você perdeu a Europa” (…) Se o slogan é Make America great again (“Tornar a América grande novamente”), entregar a Europa não torna os EUA grande, mas, sim, menor.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Líderes do chamado Sul Global, como o falecido Hugo Chávez, defenderam uma nova ordem internacional multipolarBBC News Mundo – Como a Europa deveria responder? O que ela tem que fazer?Ignatieff – Vejamos o lado econômico: (o ex-presidente do Banco Central Europeu) Mario Draghi deixou bem claro que, a menos que a Europa tenha um mercado único de capital e trabalho, não vai conseguir competir.Não sou economista, portanto não é minha área, mas está claro que, apesar de haver um mercado comum de bens, não há um mercado de trabalho e, acima de tudo, de capital europeu. A formação de capital é fraca na Europa, e são necessárias enormes quantidades de capital para sermos competitivos em inteligência artificial, medicamentos e outras áreas.No que diz respeito à defesa, a Europa vai ter que passar de 1,3% do PIB para 2,5% muito rapidamente. Em seguida, vai ter de reforçar o controle de suas fronteiras e, ao mesmo tempo, criar um fluxo migratório regular e legal para substituir sua demografia em declínio.Tudo isso é difícil, mas tudo isso é possível, e então você vai ter que fazer alguns amigos. Quero dizer, poderia fazer muito mais negócios com o Canadá, com a Ásia e a África.BBC News Mundo – Desde o fim do século 20, líderes latino-americanos, como o falecido Hugo Chávez, vêm falando sobre esta nova ordem multipolar. No entanto, não é apenas a Europa que parece estar excluída, mas também outras potências como a Índia, o Brasil e o México.Ignatieff – Um mundo tripolar, com a China tendo uma esfera de influência no Leste Asiático, com a Rússia na Europa Oriental, e os EUA dominando tudo, da Groenlândia ao Chile, levanta a questão de onde ficam a África do Sul, o Brasil, a Índia e a Indonésia.A China, a Rússia e os EUA podem dividir o mundo tanto quanto quiserem, mas haverá muitas partes do mundo que não se encaixam em lado nenhum, e isso é bom.O desafio para a América Latina e outras regiões é desenvolver economias muito, muito fortes e sistemas políticos muito sólidos. Não precisa ser um gênio. Se você for forte, ninguém vai te pressionar.



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