Volkswagen, BMW, Mercedes-Benz: como carros alemães entraram em uma crise sem precedentes

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    Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, A fabricação de automóveis representa cerca de um quinto da produção industrial da AlemanhaArticle informationAuthor, Theo LeggettRole, Correspondente internacional de negócios Há 18 minutosDurante décadas, a fabricação de automóveis foi a joia da coroa industrial da Alemanha, um símbolo poderoso do famoso milagre econômico do país no pós-guerra. Suas “três grandes” montadoras, Volkswagen, Mercedes-Benz e BMW, há muito tempo são aclamadas por seu desempenho, inovação e engenharia de precisão. Mas, atualmente, o setor automotivo alemão está enfrentando dificuldades. Com a crise na economia sendo um fator determinante para as eleições deste mês no país, como ela pode retomar a trajetória de recuperação?Quando se chega de trem a Wolfsburg, na Baixa Saxônia, a primeira coisa que se vê é a fábrica da Volkswagen. Sua enorme fachada, estampada com um logotipo gigante da VW e ladeada por quatro chaminés altas, toma conta de uma das margens do canal que atravessa a cidade. O complexo de 6,5 km² fica ao lado do Autostadt, uma espécie de parque temático dedicado aos automóveis e à VW, a maior montadora da Europa. A Volkswagen Arena, um estádio esportivo, fica a uma curta distância.Wolfsburg é a resposta da Alemanha à Detroit de meados do século 20 — não se tratava tanto de uma cidade com uma fábrica de automóveis, mas de uma fábrica com uma cidade que cresceu em torno dela. Cerca de 60 mil pessoas de toda a região trabalham na fábrica, enquanto a cidade em si tem uma população de cerca de 125 mil habitantes. Os moradores locais dizem que, mesmo que você não trabalhe na fábrica, é certo que muitos de seus amigos trabalham, assim como metade da sua turma da escola.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Quando você chega de trem a Wolfsburg, uma das primeiras coisas que você vê é a fábrica da Volkswagen”Wolfsburg e Volkswagen — é uma espécie de sinônimo”, explica Dieter Landenberger, o historiador do Grupo VW, enquanto olha afetuosamente para um modelo antigo de Fusca. Ele faz parte de uma série de carros clássicos lindamente restaurados no Zeithaus — um enorme museu com fachada de vidro no Autostadt, dedicado aos ícones da indústria automobilística.”Temos orgulho da fábrica”, diz ele. “Ela é um símbolo do período da década de 1950, quando a Alemanha precisou se reinventar e se reconstruir após a guerra. Ela foi uma espécie de motor do milagre econômico alemão.”Hoje, no entanto, a fábrica também passou a simbolizar alguns dos principais problemas que afetam o setor automotivo alemão como um todo. A fábrica de Wolfsburg tem capacidade para produzir 870 mil carros por ano. Mas, até 2023, estava produzindo apenas 490 mil, de acordo com o Instituto Econômico Alemão, com sede em Colônia. E, na Alemanha, ela está longe de ser a única. As fábricas de automóveis em todo o país estão operando bem abaixo da sua capacidade máxima. O número de carros produzidos na Alemanha caiu de 5,65 milhões em 2017 para 4,1 milhões em 2023, de acordo com a Organização Internacional de Fabricantes de Veículos Automotores.Tudo isso é muito importante no momento em que o povo alemão se prepara para ir às urnas em 23 de fevereiro. A indústria automotiva não é apenas uma fonte de orgulho nacional; ela também é um importante motor da riqueza nacional. As divergências sobre como resolver os problemas econômicos do país foram um fator que contribuiu para o colapso do governo de coalizão em novembro. Quem quer que esteja no poder após a eleição vai precisar inevitavelmente de um plano para reaquecer a economia, e é provável que a retomada do setor automotivo desempenhe um papel importante.A fabricação de automóveis representa cerca de um quinto da produção industrial do país e, se a cadeia de suprimentos for levada em consideração, ela gera cerca de 6% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com a consultoria Capital Economics. O setor emprega aproximadamente 780 mil pessoas diretamente — e sustenta milhões de outros empregos.Não é apenas a produção que está em baixa. As vendas de carros fabricados por marcas alemãs são muito menores do que eram há alguns anos. Entre 2017 e 2023, as vendas da VW caíram de 10,7 milhões para 9,2 milhões, enquanto, no mesmo período, as da BMW passaram de 2,46 milhões para 2,25 milhões, e as da Mercedes-Benz, de 2,3 milhões para 2,04 milhões, conforme mostram os relatórios das empresas.Todas as “três grandes” montadoras viram seus lucros antes dos impostos despencarem em cerca de um terço nos primeiros nove meses de 2024, e cada uma delas avisou que seus ganhos para o ano como um todo seriam menores do que o previsto anteriormente.O desenvolvimento de carros elétricos absorveu um enorme investimento, mas o mercado para eles não cresceu tão rápido quanto o esperado, enquanto os concorrentes estrangeiros estão mostrando sua força. A ameaça de tarifas impostas pelos EUA e outros governos também paira no ar.”Há muitas crises, um mundo inteiro de crises. Quando uma crise termina, outra está chegando”, diz Simon Shütz, porta-voz da Federação da Indústria Automotiva Alemã (VDA, na sigla em alemão).As vendas de carros na Europa vêm caindo desde 2017, de acordo com Franziska Palmas, economista especializada em Europa da Capital Economics. “Recentemente, elas se recuperaram um pouco, mas ainda estão cerca de 15 a 20% abaixo do que estavam no pico em 2017”, diz ela. “Isso se deve, em parte, a fatores como a pandemia e a crise energética. Mas os carros também estão durando mais — e as pessoas já têm muitos carros na Europa. Então, a demanda tem sido fraca.”Crédito, Getty ImagesSonho elétricoOutro fator importante foi a já mencionada transição para os carros elétricos. Desde o escândalo das emissões de diesel de 2015 — em que se descobriu que a VW havia manipulado os testes de emissões nos EUA —, o setor vem passando por uma revolução tecnológica.Com a determinação da União Europeia e dos governos europeus de eliminar gradualmente os carros a gasolina e a diesel na próxima década, as montadoras não tiveram outra escolha a não ser investir dezenas e, coletivamente, centenas de bilhões de euros no desenvolvimento de modelos elétricos e na construção de novas linhas de produção.Mas, embora os carros elétricos já representem uma parcela significativa de todos os carros vendidos — 13,6% no bloco europeu, e 19,6% no Reino Unido no ano passado, por exemplo —, sua participação no mercado não tem crescido tão rápido quanto o previsto.E na própria Alemanha, a remoção repentina de subsídios generosos para compradores de carros elétricos, no fim de 2023, contribuiu, na verdade, para uma queda drástica de 27% nas vendas de todos os veículos elétricos no país no ano passado, tornando a vida ainda mais difícil para as empresas alemãs no mercado interno.”A decisão de retirar os subsídios repentinamente foi muito ruim, porque minou a confiança dos nossos clientes”, diz Simon Schütz, da VDA.”Passar do motor de combustão para a mobilidade elétrica é um processo muito grande. Estamos investindo bilhões na reconstrução de todas as fábricas. E isso leva algum tempo, não há dúvida em relação a isso.”Um negócio caroEnquanto tudo isso acontecia, as fabricantes alemãs também estavam lidando com outra preocupação séria. Fazer negócios na própria Alemanha, operando fábricas no país e empregando centenas de milhares de pessoas, é muito caro.Tradicionalmente, os trabalhadores do setor automotivo têm desfrutado de salários e benefícios generosos graças aos acordos firmados entre os sindicatos e os patronatos. De acordo com a Capital Economics, em 2023, o salário base médio mensal no setor automotivo alemão era de cerca de 5,3 mil euros, em comparação com 4,3 mil euros na economia alemã como um todo.Durante anos, esta abordagem ofereceu às empresas sediadas na Alemanha certas vantagens para, por exemplo, evitar distúrbios na indústria e atrair e reter funcionários talentosos. No entanto, também fez com que as fabricantes de automóveis alemãs tivessem os custos trabalhistas mais altos do setor global. Em 2023, esses custos eram, em média, de 62 euros por hora, em comparação com 29 euros na Espanha, e 20 euros em Portugal, de acordo com a VDA.O resultado foi um aumento acentuado nos preços da energia. Embora tenham diminuído desde então, os custos de energia para uso industrial na Alemanha continuam muito altos em relação aos padrões internacionais. “Os preços da energia aqui são três a cinco vezes mais altos do que nos EUA ou na China — muito mais altos do que em nossos principais concorrentes”, observa Schütz.E isso está sendo sentido em todo o setor, não apenas nas próprias montadoras. “Desde as usinas siderúrgicas da ThyssenKrupp e da Salzgitter, que produzem os rolos de chapa metálica que mais tarde são transformados em portas e capôs, até os fabricantes de componentes menores usados nos sistemas de transmissão, os custos explodiram como resultado dos altos preços da energia”, afirma Matthias Schmidt, da consultoria Schmidt Automotive Research.’Um choque muito grande’No ano passado, essas pressões chegaram ao ápice. Na VW, que tem 45% de sua equipe global na Alemanha, os gestores decidiram finalmente que era necessário tomar medidas radicais para reduzir os custos.”Foi um choque muito grande”, me disse o porta-voz do sindicato IG Metall, Steffen Schmidt, enquanto tomávamos um café perto da fábrica da VW, em Wolfsburg.”A empresa não disse nada publicamente.”Coube a Daniela Cavallo, chefe do poderoso conselho de trabalhadores da VW e principal representante dos funcionários, dar a notícia. “Eles realizaram uma grande reunião do lado de fora dos portões da fábrica. Milhares de trabalhadores — mas o silêncio era tamanho que daria para ouvir um alfinete cair ali”, diz Schmidt. “Eles ficaram atônitos. Milhares de pessoas, todas completamente em silêncio.”Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Nem todos os problemas da indústria automotiva alemã se restringem à própria AlemanhaO que a VW propôs não tinha precedentes. Os representantes do sindicato haviam comparecido às reuniões esperando negociar um aumento salarial anual. Eles estavam pedindo um reajuste de 7%. Em vez disso, foi dito a eles que a empresa precisava que eles aceitassem um corte salarial de 10%.O pior estava por vir. A empresa disse que talvez tivesse que fechar até três de suas fábricas na Alemanha — e estava encerrando um acordo trabalhista que protegia os empregos dos trabalhadores, que estava em vigor há décadas.Arne Meiswinkel, negociador-chefe da VW, afirmou na época que a situação enfrentada na Alemanha era “muito grave”, e que “a Volkswagen só vai poder prevalecer se prepararmos a empresa para o futuro agora, em face dos custos cada vez maiores e do grande aumento da concorrência”.A Volkswagen nunca havia fechado uma fábrica alemã em seus 87 anos de história. Diante da intensa oposição de sindicatos e políticos, e após curtas, porém perturbadoras, “greves de advertência” de trabalhadores sindicalizados, a ideia acabou sendo arquivada. Mas o simples fato de ter sido apresentada provocou um abalo sísmico em todo o setor.Nesse meio tempo, a força de trabalho concordou com limites dolorosos em relação a salários e bônus, e a VW disse que cortaria mais de 35 mil empregos até o fim da década, embora de uma “maneira socialmente responsável” que evitasse demissões compulsórias.De forma menos evidente, a Mercedes-Benz também lançou uma iniciativa de corte de custos no ano passado, com o objetivo de economizar vários bilhões de euros por ano — embora as demissões compulsórias na força de trabalho alemã sejam altamente improváveis, já que um acordo trabalhista as invalida até 2030. Enquanto isso, a Ford, que opera duas fábricas na Alemanha, anunciou recentemente planos para cortar 2,8 mil empregos no país.Nem todos os problemas do setor automotivo alemão estão restritos à própria Alemanha. Com o mercado europeu saturado, os fabricantes do continente têm buscado crescimento em outros lugares há várias décadas.O impacto da ChinaUm dos mercados mais lucrativos tem sido a China, onde, por algum tempo, a crescente classe média teve um apetite aparentemente insaciável por veículos europeus de luxo. A VW, a Mercedes-Benz e a BMW se uniram a empresas locais, montando fábricas na própria China para atender à demanda local.Mas agora essa fonte de crescimento está secando. Todas as “três grandes” montadoras registraram queda nas vendas recentemente — em 2023, as vendas da VW na China despencaram 9,5% em relação ao ano anterior; as da Mercedes-Benz caíram 7%; e as da BMW, 13,4%. Sua participação combinada no mercado chinês também diminuiu para 18,7%, contra um pico de 26,2% em 2019. Isso parece ser o resultado de uma economia chinesa em desaceleração, da queda do interesse em carros caros de marcas estrangeiras e do rápido crescimento das marcas locais, especialmente no mercado de carros elétricos.”Não faz muito tempo, as marcas ocidentais representavam qualidade e confiança”, explica Mark Rainford, fundador do site Inside China Auto. Mas, segundo ele, desde então, a reputação e o apelo das marcas chinesas melhoraram muito.Todas as “três grandes” montadoras dizem que as tendências na China tiveram um impacto significativo sobre seus ganhos.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, As vendas de carros fabricados por marcas alemãs são muito menores do que eram há apenas alguns anosAs marcas chinesas também estão tentando conquistar uma fatia do mercado europeu, ajudadas por seus custos operacionais muito mais baixos do que os dos rivais mais estabelecidos, tanto porque os salários são mais baixos na China, quanto porque, como empresas apenas de veículos elétricos, elas não têm os mesmos custos herdados das fabricantes que estão fazendo a transição de carros a gasolina e diesel para carros movidos a bateria.De acordo com a Comissão Europeia, as marcas chinesas também se beneficiam de grandes subsídios governamentais, o que permite a elas vender carros a preços anormalmente baixos. Em outubro, a União Europeia introduziu tarifas extras sobre as importações de veículos elétricos fabricados na China, em um esforço para criar igualdade de condições.Guerras comerciais?As empresas alemãs se opuseram às tarifas da União Europeia, pois temiam que a retaliação da China pudesse afetar suas próprias exportações. Agora, elas também enfrentam a ameaça de novas medidas protecionistas que estão sendo introduzidas pelo governo Trump, incluindo possíveis tarifas sobre carros enviados da União Europeia. Para um setor que depende muito das exportações, o aumento do protecionismo é uma ameaça crescente.”Sabemos que as guerras comerciais só criam perdedores em ambos os lados. As tarifas vão custar riqueza, crescimento e empregos”, diz Simon Schütz, da VDA.Embora algumas das pressões enfrentadas pelas empresas automotivas alemãs não fossem previsíveis, ainda havia um elemento de complacência, acredita o analista Matthias Schmidt. “Elas sabiam que os problemas estruturais existiam, mas foram ofuscados pelo gás russo barato”, diz ele.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Todas as ‘três grandes’ montadoras dizem que as tendências na China tiveram um impacto significativo sobre seus ganhos”A expansão para a China e os altos lucros enviados de volta para a Europa mascararam as questões dos altos custos de mão de obra, deixando os sindicatos com uma carta coringa na manga.””A Alemanha tem sido efetivamente um mercado voltado para a exportação e, quando esses mercados espirram, a Alemanha pega um resfriado, e foi isso que aconteceu.”Um desafio de alto riscoSerá que as montadoras de automóveis da Alemanha vão conseguir recuperar sua sorte? Esta é uma questão vital para as fabricantes, para suas redes de fornecedores e para o país como um todo.”O problema da Alemanha é que não somos competitivos”, diz Ferdinand Dudenhöffer, diretor do Centro de Pesquisa Automotiva, com sede em Bochum. “Não apenas em termos de custo, mas também em termos das novas tecnologias que vão reger o mundo no futuro.”Ele acredita que a China se tornou o centro de gravidade para inovação em áreas como transformação digital e tecnologia de baterias. “A solução para as montadoras e para os fornecedores, na minha opinião, vai ser levar suas fábricas para o exterior”, ele avalia.Simon Schütz é mais otimista. Ele acredita que o setor pode prosperar, mas somente se obtiver o apoio necessário do governo após as eleições no fim deste mês.”Nosso setor automotivo vai ser líder mundial, tenho certeza disso”, ele afirma.”A questão é: onde vão estar os futuros empregos? Eles vão ficar na Alemanha, porque podemos construir carros aqui, ou nossas empresas vão para outro lugar?”Mas, para o representante do sindicato Steffen Schmidt, a solução é voltar aos valores industriais tradicionais da Alemanha. “Temos que nos tornar novamente líderes em inovação e tecnologia”, diz ele. “Assim, poderemos manter altos salários e boas condições para os trabalhadores.”Na visão dele, o caminho que o novo governo tem pela frente é muito claro: “Investir, investir, investir. Em infraestrutura, em tecnologia, em energia verde e em educação”.Para dezenas de milhares de trabalhadores em Wolfsburg e em outras “cidades automobilísticas” da Alemanha, como Ingolstadt, Weissach, Munique, Stuttgart e Zwickau, os riscos não poderiam ser mais altos.



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