Armas nucleares: por que o Brasil não tem bomba atômica?

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    Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Só nove países possuem a bomba atômica: EUA, Rússia, França, China, Reino Unido, Paquistão, Índia, Israel e Coreia do NorteHá 17 minutosA entidade atualizou seu relógio do Juízo Final para 89 segundos para meia noite — um gesto simbólico que serve para alertar o mundo para perigos como as ameaças nucleares, possíveis usos indevidos de avanços em biologia e inteligência artificial e mudanças climáticas.Uma guerra nuclear entre potências é uma ameaça antiga que nunca se consolidou. Durante a Guerra Fria, surgiram doutrinas militares — como a dissuasão nuclear e a destruição mútua assegurada — que explicam por que o mundo não caminhou para uma guerra nuclear. A ideia é de que o mero fato de um país ter armas nucleares serve para intimidar outra potência nuclear rival — evitando assim uma escalada de tensões que poderia levar, em última instância, à destruição do planeta.Ainda assim, a ameaça de um conflito nuclear nunca desapareceu por completo. No ano passado, a China interrompeu um diálogo com os Estados Unidos sobre proliferação nuclear, em resposta à ajuda americana a Taiwan. Em novembro, a Rússia atualizou seu protocolo para uso de armas nucleares, dizendo que o país poderia vir a usar esse tipo de armamento em caso de ameaça à sua soberania e território.Hoje no mundo nove países possuem esse tipo de armamento: Estados Unidos, Rússia, França, China, Reino Unido, Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte.Ao longo da sua história, o Brasil teve oportunidades de fazer parte desse seleto clube de países — mas nunca levou adiante a ideia.Em 1998, o Brasil assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, no qual assumiu o compromisso com o resto do mundo de não desenvolver armas do tipo.A BBC News Brasil conversou com especialistas que explicam que a falta de consenso na sociedade e a ausência de uma ameaça exterior clara desestimularam o país a perseguir esse caminho.”O Brasil não tem arma nuclear porque não precisa”, resume Carlo Patti, historiador da Universidade de Pádova, na Itália, e que pesquisou extensamente o programa nuclear brasileiro.”O Brasil nunca precisou de armas nucleares para ações de defesa estratégica. Ele nunca teve uma ameaça real por parte de outros países, como uma ameaça da Argentina, ou da União Soviética durante a crise dos mísseis em Cuba. E são as ameaças externas que justificam a existência de um arsenal nuclear, e no Brasil essa ameaça nunca foi séria.”Mas apesar da ausência de ameaças concretas, a ideia de um arsenal nuclear brasileiro sempre existiu — seja em discussões na sociedade ou dentro de gabinetes.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Em 2024, Vladimir Putin atualizou o protocolo russo de uso de armas nuclearesVozes na sociedade”Sou o único candidato a presidente que tem coragem de dizer que o Brasil precisa construir a bomba atômica. Só cinco países no mundo têm o monopólio do poder nuclear, impondo aos outros a humilhação de assinar tratados de não proliferação de armas nucleares. É preciso construir a bomba não para jogar a bomba em ninguém, mas sim para evitar que alguém jogue a bomba aqui, como os EUA fizeram com o Japão em 1945. Se o Japão tivesse a bomba, ninguém se atreveria a ter destruído Hiroshima e Nagasaki. Meu nome é Enéas.”O trecho acima é parte da curta e folclórica propaganda eleitoral de 1994 de Enéas Carneiro, médico que fundou nos anos 80 o partido nacionalista e conservador Prona e concorreu diversas vezes à Presidência. Enéas foi o deputado federal mais votado do Brasil em 2002 — mas o Prona nunca se estabeleceu como uma força de expressão no debate nacional.Enéas é um raro exemplo de um político brasileiro que defendeu abertamente a bomba atômica.Historiadores dizem que nunca houve no Brasil um político ou qualquer outra voz de grande relevância no debate nacional que defendesse que o país tivesse armas nucleares.”Quando se criou o programa de energia nuclear brasileiro, sempre se usou o eufemismo ‘segurança nacional'”, diz a historiadora Ana Maria Ribeiro de Andrade, pesquisadora aposentada do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), autora do livro A Opção Nuclear: 50 Anos Rumo à Autonomia.Ela conta que nos anos 1950, quando o Brasil começou seu programa de desenvolvimento de energia nuclear, as discussões eram lideradas dentro do governo tanto por físicos brasileiros e militares.Andrade leu as atas das reuniões da época em que foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas (o CNPq, hoje conhecido como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), onde se discutiu também qual política o Brasil deveria adotar em relação a pesquisa de energia nuclear, que era uma tecnologia nova na época.Ela conta que as atas possuem carimbos de “secreto” e com várias advertências de militares ao longo das reuniões que era preciso manter sigilosas as discussões em torno do assunto. Para ela, havia muito cuidado dos militares brasileiros em tratar abertamente sobre a possibilidade de desenvolver armas nucleares.Além disso, havia pressão internacional para que o Brasil não tivesse um programa bélico.”Houve pressão dos EUA para que o Brasil não entrasse no seleto clube de fabricantes de armamentos militares”, diz Andrade.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Relógio do Juízo Final atualizado em janeiro de 2025 afirma que ameaça de extinção no mundo nunca foi tão grandeDitadura militar e projetos secretosAo longo da ditadura militar brasileira, a questão sempre foi discutida internamente — dentro dos gabinetes de Brasília —, mas segundo a historiadora com pouca transparência ou debate público.Mas o Brasil deu sinais ao mundo de que estaria aberto, em tese, a desenvolver suas próprias armas nucleares ao não aderir, no final dos anos 1960, ao recém-criado Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. O país só veio a aderir ao tratado em 1998.Mas essa intenção nunca foi expressa abertamente pelo governo. Ao invés disso, o Brasil perseguiu — pelo menos oficialmente — um programa pacífico de energia nuclear, que começou, segundo Andrade, com diversos intercâmbios científicos do Brasil com a França e Alemanha.Nos anos 1970, esse programa nuclear pacífico brasileiro deu um salto com a assinatura de um acordo com a Alemanha, com transferência de nove centrais atômicas para o Brasil e todo o ciclo de produção do combustível nuclear. Andrade conta que foi considerado o “acordo do século” do Brasil, e custou bilhões ao país.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Parceria com a Alemanha deu início ao projeto da usinas nucleares de Angra dos Reis”Havia a expectativa dos militares brasileiros que o Brasil de fato iria absorver a tecnologia nuclear da Alemanha. Mas se constatou que isso não era real”, afirma Andrade.O acordo aumentou muito o conhecimento científico brasileiro sobre energia nuclear. Mas não permitia o país dominar completamente o ciclo do enriquecimento do urânio. Além disso essa capacidade sempre esteve limitada a fins pacíficos. “Esse acordo [com a Alemanha] tinha salvaguardas internacionais, com fiscalização da Agência de Energia Atômica”, diz Carlo Patti, da Universidade de Pádova. Tudo que o Brasil desenvolvia dentro dessa parceria com a Alemanha precisava ser transparente, com acesso de inspetores internacionais às instalações nucleares brasileiras.Para perseguir programas que não estivessem sob fiscalização internacional, e permitisse que o país pesquisasse mais livremente a energia nuclear — desde o domínio do ciclo do enriquecimento de urânio à capacidade de dispositivos explosivos —, o Brasil desenvolveu projetos secretos no final dos anos 1970.”Quando se viu o fracasso do acordo com a Alemanha, que dali não sairia nada, as três armas das Forças Armadas passaram a desenvolver seus projetos paralelos”, afirma Andrade. Ela ressalta que esses programas foram feitos sem repercussão na sociedade e no meio científico e tecnológico.A forma que as Forças Armadas encontraram de evitar fiscalização internacional foi firmando parcerias com centros de pesquisas civis autônomos em universidades brasileiras — que não estariam sujeitos à ingerência internacional.Em 1979, os cientistas das Forças Armadas começaram a cooperar com centros de pesquisa civis, como o Instituto de Engenharia Nuclear do Rio de Janeiro e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Universidade de São Paulo (USP).Essa cooperação tinha vários objetivos específicos para o Brasil desenvolver diferentes aspectos do desenvolvimento da energia nuclear.O Exército tentou construir um reator para produção de plutônio. A Aeronáutica buscou usar o método laser para enriquecer urânio. E a Marinha perseguiu um submarino nuclear.Bomba atômica brasileiraMas houve intenção dos projetos paralelos da ditadura militar de construir uma bomba atômica brasileira?Carlo Patti fala sobre um dos projetos secretos da Aeronáutica para desenvolver artefatos nucleares para uso pacífico — explosivos usados para abrir poços de petróleo ou desviar rios, por exemplo. EUA e União Soviética também tinham projetos pacíficos semelhantes na época.Um dos problemas dos programas de dispositivos explosivos nucleares pacíficos é que eles podem também ser usados para fins de guerra.”Não existe diferença entre artefatos para uso pacífico e para fins militares. A tecnologia é a mesma”, diz Patti. Nos anos 1970, a Índia tinha um programa semelhante — que foi usado no fim para dar a capacidade nuclear bélica ao país.Uma das evidências da existência desse programa especial secreto eram túneis construídos na Serra do Cachimbo, no Sul do Pará.Nunca ficou claro sobre o quão sério os militares brasileiros estavam empenhados em construir uma bomba atômica brasileira como parte desse projeto.”Há controvérsias se aqueles poços teriam profundidade suficiente para esses testes de armamento bélico de origem nuclear”, afirma o historiador.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Com redemocratização, Fernando Collor disse que Brasil tinha apenas planos nucleares pacíficosA existência dos poços de testes da Serra do Cachimbo era desconhecida do público e foi revelada pela Folha de São Paulo em 1986, já após o fim da ditadura, durante o governo do presidente José Sarney. Com o fim da ditadura militar e a redemocratização, o Brasil procurou mostrar ao mundo que não tinha intenção de desenvolver armas nucleares. Em 1990, o então presidente Fernando Collor foi à Serra do Cachimbo e enterrou os poços construídos pela Aeronáutica. Em uma imagem simbólica, Collor apareceu colocando uma pá de cal nos poços.Dias depois, ele viajou para a Assembleia Geral da ONU e fez um discurso ressaltando as ambições pacíficas do projeto nuclear brasileiro.Outra evidência que historiadores encontraram de uma intenção de militares brasileiros de construir uma bomba atômica foi em uma reunião a portas fechadas em Brasília no final do último governo da ditadura, do presidente João Batista Figueiredo.Patti conta que um diplomata que participou de uma reunião em Brasília em 1984 relatou que o ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, teria proposto ao presidente Figueiredo que o Brasil desenvolvesse e testasse um artefato nuclear.Mas a ideia, que parece ter sido levantada informalmente, foi prontamente descartada.”Imediatamente o presidente Figueiredo considerou isso uma maluquice. Eu li também um documento do Itamaraty que dizia que se nós explodirmos uma arma nuclear, teremos imediatamente um regime de sanções enormes, o Brasil vai ser isolado pela comunidade internacional e destruiremos a nossa relação com a Argentina”, conta Patti.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Historiador diz que presidente João Figueiredo descartou bomba atômica brasileira como ‘maluquice’LegadosEm 1982, o Congresso brasileiro realizou uma CPI para investigar os projetos paralelos de energia nuclear brasileiro. Andrade conta que o clima inicial da CPI era de crítica dos parlamentares — mas que ao longo das sessões a opinião dos congressistas mudou, e muitos viraram entusiastas do projeto nuclear brasileiro.O presidente da CPI era Itamar Franco, que anos depois se tornaria presidente brasileiro. Em um livro de memórias, Franco diz que a CPI concluiu que o programa oficial nuclear brasileiro fora um fracasso, mas que os projetos paralelos foram bem-sucedidos em aumentar a capacidade tecnológica brasileira.Andrade e Patti dizem que o projeto paralelo da Marinha, conduzido pelo almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, foi extremamente bem-sucedido.O objetivo inicial era desenvolver submarinos com propulsão nuclear, mas o projeto civil militar do Ipen e Marinha foi mais longe e levou o Brasil a dominar a capacidade de enriquecer urânio através da tecnologia da ultracentrifugação.Em menos de oito anos, o Brasil passou a dominar essa tecnologia, que é secreta e não pode ser inspecionada por inspetores internacionais. Em 1987 o Brasil anunciou sua capacidade ao mundo.”Quando a notícia vazou, os EUA ficaram enlouquecidos”, diz Andrade.O feito só foi feito graças à não participação do Brasil no tratado de não-proliferação nuclear, que teria proibido qualquer iniciativa do tipo.Mesmo não fazendo parte do restrito clube de nove países com bombas atômicas, o Brasil é hoje parte de outro seleto grupo.”O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem jazidas de urânio e tem essa capacidade de produção de combustível nuclear”, afirma Patti.Não-proliferaçãoSe o Brasil conseguiu desenvolver tantos projetos nucleares sem dar satisfações à comunidade internacional, porque o Brasil assinou em 1998 o Tratado de Não-Proliferação, abrindo mão dessa independência?Segundo Patti, o Brasil aderiu ao acordo por quatro motivos diferentes. Primeiro, a redemocratização e um pacto nacional de apenas desenvolver energia nuclear com fins pacíficos.Segundo, uma aproximação com a Argentina, com fiscalização mútua dos programas nucleares dos dois países. Para que essas fiscalizações ocorressem, tanto Brasil como Argentina precisaram renunciar às suas intenções de desenvolver armas nucleares.Terceiro, o mundo abandonou a ideia de desenvolvimento de artefatos nucleares para fins pacíficos — o que vinha sendo usado por outros países.E quarto por que o Tratado de Não-Proliferação tenha uma adesão quase universal nos anos 1990. O custo de adesão ao tratado pelo Brasil já não era muito alto, porque naquele momento o Brasil já tinha desenvolvido suficientemente seu conhecimento nuclear.Nos últimos anos, a diplomacia brasileira vem se destacando por esforços de desarmamento nuclear no mundo.Dentro da sociedade brasileira, o debate sobre o desenvolvimento de armas nucleares não está sequer na pauta.A declaração mais recente sobre o assunto foi dada em 2019 pelo então presidente da Comissão de Relações Exteriores, Eduardo Bolsonaro. Ele defendeu que o Brasil discutisse a saída do Tratado de Não-Proliferação — para ter a liberdade de desenvolver programas nucleares próprios.”A gente sabe que se o Brasil quiser atropelar essa convenção tem uma série de sanções. É um tema muito complicado, mas eu acredito que um dia possa voltar ao debate aqui”, disse Eduardo Bolsonaro em uma reunião da comissão.Em 2022, a Fundação Getúlio Vargas fez uma pesquisa de opinião com 2 mil brasileiros sobre o apoio à uma bomba atômica do Brasil.Apenas 25% dos entrevistados se manifestaram em favor de uma bomba brasileira. No caso de o Brasil ser ameaçado por um país estrangeiro o apoio subia para 47%.Caso o Brasil decidisse hoje em dia abandonar o Tratado de Não-Proliferação, ele estaria em condições tecnológicas de desenvolver sua bomba atômica?Carlo Patti diz que não há dados suficientes para se saber isso, com base nos documentos disponíveis publicamente.



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