‘Ainda Estou Aqui’: como Eunice Paiva ajudou a evitar extinção de povo indígena

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    Crédito, Embaixada do Reino Unido no BrasilLegenda da foto, Povo indígena zoró está se recuperando após quase ter sido extinto nos anos 1980Article informationAuthor, João FelletRole, Da BBC News Brasil em São PauloHá 17 minutos”Não tínhamos condição de enterrar os mortos. Os corpos ficavam no pátio da aldeia, porque eram muitas pessoas que morriam por dia. O meu avô falava que fugiram dos corpos, porque não tinham condições de vê-los.”Assim o ancião Paliã Zoró, de 80 anos, descreveu a situação de seu povo nos anos 1980, quando fazendeiros, madeireiros e garimpeiros levaram uma série de doenças para o território da etnia indígena zoró, no noroeste do Mato Grosso.Vivendo em isolamento até poucos anos antes e sem defesa contra doenças como gripe, sarampo e tuberculose, o povo zoró pediu então ajuda externa para pressionar o governo a regularizar seu território como terra indígena.Só assim, acreditavam, os forasteiros deixariam o território e as comunidades poderiam se recuperar.Entre as pessoas que acudiram o grupo, havia uma advogada de São Paulo.Viúva e mãe de cinco filhos, Eunice Paiva havia se formado em direito aos 47 anos e, desde então, vinha se dedicando à defesa de direitos indígenas.O encontro seria um ponto de virada na história do povo zoró, que acabaria se recuperando depois de quase sofrer a extinção.O filme concorre ao Oscar 2025 nas categorias Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz. O trabalho de Eunice em prol dos indígenas, porém, é pouco abordado na obra e “renderia outro filme inteiro”, diz a antropóloga Betty Mindlin, professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).Crédito, Marcelo PontesLegenda da foto, Paliã Zoró, de 80 anos, sobreviveu a onda de epidemias que dizimou seu povoVisões conflitantes sobre a AmazôniaApesar da grande mortandade entre o povo zoró nos anos 1980, a demarcação do território enfrentava forte oposição.Segundo documentos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na época, já havia no território 79 invasores, uma estrada com 45 km de extensão e planos para a ocupação de 24 mil hectares por uma cooperativa de agricultores do Paraná.Os ocupantes tinham o apoio de setores do governo federal e do governo de Mato Grosso, que havia distribuído títulos de terra dentro do território.Não muito longe dali, em Rondônia e no norte de Mato Grosso, vastas regiões de floresta vinham sendo destruídas. O movimento havia sido estimulado pela ditadura militar (1964-1985), que via a ocupação da Amazônia por não indígenas como um escudo contra interesses estrangeiros na região.Quando Eunice Paiva chegou ao caso zoró, em 1986, fazia um ano que a ditadura havia acabado, mas o desmatamento seguia a pleno vapor.Eunice então elaborou um parecer jurídico analisando os argumentos favoráveis e contrários ao reconhecimento da área zoró como terra indígena.Ao final do documento, foi categórica: “Nada impede a demarcação da Área Indígena Zoró”.”Os direitos dos índios à posse de suas terras são direitos indisponíveis e que não podem ser negociados, inexistindo qualquer impugnação válida capaz de anular, restringir, extinguir ou modificar direitos da comunidade Zoró sobre a terra que é o seu ‘habitat’ natural”, concluiu a advogada.As posições de Eunice acabaram prevalecendo, e o governo declarou a área como terra indígena no ano seguinte.”Quase fomos extintos, muitas doenças vieram com os brancos, e muitos de nossos parentes foram mortos por invasores”, diz à BBC News Brasil Panderewup Zoró, cacique geral do povo. “Isso só cessou com a demarcação e homologação do nosso território e, com certeza, a doutora Eunice Paiva contribuiu neste processo”, prossegue.”Se não tivéssemos tido a cooperação de parceiros para provar em documentos nossa existência e posse da terra desde a nossa ancestralidade, teríamos sido exterminados.”A indigenista Maria Inês Hargreaves, que trabalha junto a comunidades da região desde os anos 1980, endossa a importância de Eunice no processo.”O laudo jurídico, a objetividade e a clareza dos argumentos foram fundamentais para a regularização desta terra indígena e outras em que ela colaborou”, afirma a indigenista.Hargreaves endossa a noção de que, “se a demarcação não tivesse acontecido naquele momento, talvez os zoró não estivessem vivos mais”.Ela conta que, até 1978, o povo zoró vivia isolado na floresta e somava várias centenas de integrantes.Nos anos seguintes, porém, as doenças e os confrontos com os forasteiros provocaram um declínio vertiginoso.No auge das epidemias, a população zoró chegou a ter só cerca de cem pessoas, segundo os documentos da época. “A morte acontecia rapidinho”, conta a anciã Ãjut Zoró, de 86 anos.”O sintoma era tosse, vômito, febre e pneumonia. Esses sintomas duravam mais ou menos cinco dias, até chegar à morte. A gente fazia cova para guardar os mortos. Depois de enterrados, fazíamos fogo em cima da cova.”O relato de Ãjut, assim como a fala de Paliã Zoró na abertura desta reportagem, estão no livro Zoró: antes de ver o branco (2024), que compila entrevistas com membros do grupo.Uma das autoras do livro, a servidora da Funai Lígia Neiva diz à BBC News Brasil que, após a demarcação, o povo começou a se recuperar, e os invasores foram expulsos.”Eles deixaram um rastro de devastação, com grandes pastagens formadas, mas a garantia de poder estar na terra foi muito positiva”, diz Neiva, que trabalha com o grupo desde 1988.Crédito, Arquivo pessoal/Angélica SantanaLegenda da foto, Povo indígena zoró foi contatado em 1978, mas regularização do território só se concluiu em 1991Ela afirma que o trabalho de Eunice foi essencial para a demarcação, embora poucos membros do povo zoró saibam da participação da advogada. Isso porque Eunice fez o trabalho à distância analisando documentos e estudos antropológicos, mas não visitou o território devido a dificuldades logísticas. Mas Neiva também destaca a atuação dos próprios indígenas nesse processo.Pouco numerosos e com raros falantes de português, eles se aliaram a etnias vizinhas — incluindo inimigos históricos, como o povo suruí — para confrontar os invasores e chamar a atenção da opinião pública, ela diz.”Foram para o embate, morreu gente, e aí a coisa tomou uma dimensão maior”, diz Neiva.Um dos momentos mais críticos da mobilização foi o assassinato do líder Yaminé Suruí, em 1988. Na época com 70 anos, ele teve seu corpo esquartejado e queimado por dois pistoleiros dentro da Terra Indígena Zoró.A dupla foi condenada por homicídio qualificado quase 30 anos depois, em 2017, mas jamais cumpriu pena por conta de um recurso ainda não julgado.Crédito, ReproduçãoLegenda da foto, Eunice Paiva (à dir.) após conseguir certidão de óbito do marido, Rubens Paiva; advogada foi interpretada por Fernanda Torres (à esq.) em’Ainda estou aqui’Ícone da resistência à ditaduraAinda Estou Aqui aborda a trajetória de Eunice Paiva após seu marido, o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva, ser capturado e morto pela ditadura militar, em 1971.A obra retrata a luta de Eunice para que o Estado brasileiro reconhecesse a morte do marido, uma vez que, oficialmente, ele estava apenas desaparecido.Mas se a batalha de Eunice pelo reconhecimento da morte do marido a transformou em um ícone do movimento de resistência à ditadura, as ações dela em favor de indígenas ainda não receberam reconhecimento semelhante, diz a antropóloga Betty Mindlin à BBC News Brasil.Em 7 de janeiro, Mindlin publicou no Jornal da USP um artigo sobre o trabalho de Eunice junto a povos indígenas.A antropóloga relata no texto um dia em que, durante o governo de José Sarney, Mindlin, Eunice Paiva, o cacique Raoni Metuktire e os músicos Sting, Gilberto Gil e Rita Lee, entre outros apoiadores da causa indígena, foram ao Palácio do Planalto se reunir com o chefe de gabinete da Presidência da República.O objetivo era cobrar a demarcação de 4,9 milhões de hectares de terra para o povo kayapó menkragnoti, no Pará. Mas, à entrada do edifício, o grupo foi barrado, conta Mindlin.”Não admitimos a proibição e, unidos, empurramos a porta de vidro”, ela lembra.”Os funcionários de segurança, pasmos de ver grandes artistas solicitando com respeito a entrada, mas forçando o vidro, mais de forma simbólica que efetiva, acabaram cedendo, nos deixaram passar, cada vez uns poucos, por fim todos.”Segundo a antropóloga, o próprio Sarney acabou aceitando receber o grupo.Mas eis que, a caminho do gabinete presidencial, Eunice titubeou, conta Mindlin, porque não queria apertar a mão de um político que se aliara aos militares na ditadura.Por fim, Mindlin conta que Eunice foi “persuadida a nos acompanhar, jurista ponderada capaz de argumentar e comprovar o direito às terras reivindicadas pelos kayapó”.”Sarney prometeu, mas a demarcação demorou muito a ser realizada. Foi homologada pelo presidente Itamar Franco em 1993″, ela diz.Crédito, Centro de Estudos RioterraLegenda da foto, Panderewup Zoró, cacique geral do povo zoró, diz que grupo quase foi ‘exterminado’Mindlin destaca no artigo o papel de Eunice no Programa Polonoroeste, nos anos 1980, quando se uniu a um grupo de antropólogos para avaliar o impacto da pavimentação da rodovia BR-364 (Cuiabá-Porto Velho) entre povos indígenas da região.Foi nesse contexto que, segundo Mindlin, “Eunice fez pareceres magistrais para a causa indígena” — entre os quais o laudo defendendo a demarcação da terra zoró.”Com os estudos e resultados da equipe de avaliação, incluindo e transmitindo a voz indígena e suas reivindicações, mais de 30 demarcações dos 60 povos afetados foram realizadas, além da defesa de povos isolados até então ignorados”, ela diz.Hoje, conforme mostram imagens de satélite, grande parte da floresta que sobrou no entorno da BR-364 fica nos territórios demarcados naquela época. Quase todo o resto virou terra agrícola ou pastagem.Mindlin destaca outras contribuições de Eunice às causas indígena e ambiental: a publicação de livros e artigos, a participação nas ONGs Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMÁ), Fundação Mata Virgem (FMV) e Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), e sua assessoria à Assembleia Nacional Constituinte (1988), quando influenciou na elaboração do capítulo que trata de povos indígenas.O trabalho de Eunice, segundo Mindlin, beneficiou “no mínimo 300 povos indígenas, cada um com uma saga, um enredo, uma história de costumes, línguas, enfrentamentos e resistência”.A antropóloga diz à BBC News Brasil que Eunice foi pioneira neste campo: ao lado de juristas como Dalmo Dallari (1931-2022) e José Gregori (1930-2023), ela foi uma das primeiras pessoas a recorrer a argumentos jurídicos para fortalecer demandas indígenas.Os casos que envolviam indígenas, porém, ocupavam só parte de seu tempo como advogada, já que ela precisava pegar outros casos para sustentar a família, diz Mindlin. Segundo a antropóloga, Eunice “era muito discreta” sobre sua vida pessoal e “aguentou muitas dores sozinha”, mas era inegável a conexão entre suas ações em prol dos indígenas e a luta pela memória do marido.”Ela viu que os indígenas estavam ainda mais desprotegidos que os políticos que tentaram transformar o Brasil em um país diferente, como o Rubens Paiva”, diz. Crédito, Marcelo PontesLegenda da foto, Jovens do povo zoró podem concluir ciclo educacional dentro do território desde a inauguração de uma escola, em 1992O povo zoró hojeDepois da expulsão dos invasores e da demarcação do território, a população zoró voltou a crescer.Hoje, segundo Lígia Neiva, da Funai, eles somam cerca de mil pessoas e habitam um território de 358 mil hectares — uma área três vezes maior do que o município do Rio de Janeiro.”Estão muito bem de saúde, e não se veem mais situações de doenças alarmantes”, diz Neiva. “Eles têm uma fábrica de castanha dentro da terra indígena e são referência nessa atividade.”Não que os problemas tenham desaparecido: segundo ela, o território voltou a ser alvo de madeireiros e garimpeiros nos últimos anos, o que tem preocupado os indígenas.Mas, hoje, o grupo encara esse cenário em situação bem mais confortável do que nos anos 1980.Neiva conta que hoje a imensa maioria da população zoró vive dentro da Terra Indígena. “É um povo que superou muitos desafios e é muito forte, estratégico, diplomático, com uma cultura viva.”Segundo ela, mulheres, crianças e idosos só falam a língua zoró, e desde 1992, uma escola construída com apoio do governo norueguês permite que jovens cumpram todo o ciclo educacional dentro do território.Por tudo isso, diz Neiva, poucos membros do grupo estão a par da repercussão de Ainda Estou Aqui e do interesse em torno de sua protagonista. Em parte graças a Eunice Paiva, quase nenhum zoró hoje sabe quem foi Eunice Paiva.Gráficos feitos por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil



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