‘Trump mente sobre o Canal do Panamá. É preciso checar se amigos dele não têm interesses lá’

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    Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Donald Trump assinou dezenas de ordens executivas imediatamente após o início do seu segundo mandato presidencial nos Estados Unidos.Article informationFúria, desinteresse e frustração.Para Juan Gabriel Tokatlian, doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins de Washington, nos Estados Unidos, Donald Trump retorna à Casa Branca com uma lista de assuntos pendentes em suas relações com a América Latina.”Trump chega frustrado com a América Latina pelo que não conseguiu no seu primeiro mandato”, declarou o ex-reitor e atual professor da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, na Argentina. Ele conversou com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, de sua propriedade perto de Medellín, na Colômbia, onde morou por 18 anos.”Acredito que iremos observar esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações [no governo]”, declarou o reconhecido analista e pesquisador argentino.Tokatlian acaba de publicar seu livro Consejos No Solicitados sobre Política Internacional (“Conselhos não solicitados sobre política internacional”, em tradução livre), que reúne suas conversas com a jornalista Hinde Pomeraniec.A obra analisa as relações de Trump com o México, o posicionamento de Washington frente a Nicolás Maduro e o vínculo com a China na sua disputa pela influência na América Latina.Confira abaixo a entrevista.Crédito, Universidad Torcuato Di TellaLegenda da foto, Juan Tokatlian é doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins, de Washington DC, nos Estados Unidos.BBC News Mundo – Como o sr. analisa esta nova etapa nas relações entre os Estados Unidos e a América Latina?Juan Gabriel Tokatlian – Se fizermos uma análise histórica dos discursos de posse dos presidentes dos Estados Unidos no último século, o papel da América Latina na mensagem de Trump na segunda-feira [20/1] é incomum.Trump não mencionou nenhum país ou região, a não ser por dois anúncios vinculados à América Latina: a fronteira sul dos Estados Unidos e o Canal do Panamá.Ele quis mostrar que estava voltando com força frente à região, mas seu discurso apresentou um paradoxo. Para Trump, os Estados Unidos enfrentam um estado calamitoso, uma espécie de impotência, que ele resolve de forma totalmente prepotente.Ele afirma que irá recuperar os Estados Unidos, mas parte da mesma debilidade exposta por ele próprio.BBC News Mundo – Como o sr. acredita que Trump veja a América Latina?Tokatlian – Tanto na campanha de 2016, que o levou à Presidência, quanto na de 2024, tudo o que se referia à América Latina fazia parte de uma agenda negativa: criminalidade, narcotráfico e migração.Para Trump, pelo menos no discurso de campanha e depois de ser eleito presidente, a América Latina não tinha nenhum valor positivo. Acredito que irá continuar desta forma.Mas Martha Cottam, autora do livro Foreign Policy Decision Making [“Tomada de decisões na política externa”, em tradução livre], utiliza a imagem da ameaça e da dependência para analisar a política externa americana.A imagem da ameaça é a de um país ou região que coloca em risco a segurança nacional e a própria sobrevivência dos Estados Unidos. Antes, era a União Soviética. Agora, é a China.A imagem da dependência é a do país ou região que, para os Estados Unidos, não entende que suas ações possam prejudicar este país. É aquele que não percebe os danos que pode provocar, por exemplo, com o narcotráfico ou a migração.Crédito, EPALegenda da foto, O governo americano cancelou as reuniões com solicitantes de asilo no país assim que Donald Trump assumiu a presidência.BBC News Mundo – Então Trump vê a América Latina como “dependente”, mais do que como ameaça…Tokatlian – Sim, para Trump, a América Latina é a imagem do dependente. E, acima de tudo, ele a infantiliza.Trump considera que a região é irrelevante para os Estados Unidos. E também diz que ela deve se comportar de determinada maneira para merecer algo positivo.A imagem da América Latina como dependente atravessa diversos governos além de Trump. Mas, com ele, ela se fortalece e inclui também um componente de revanche.BBC News Mundo – Por que de revanche?Tokatlian – O livro do seu último secretário de Defesa, Mark Esper [A Sacred Oath: Memoirs of a Secretary of Defense During Extraordinary Times – “Juramento sagrado: memórias de um secretário de Defesa durante tempos extraordinários”, em tradução livre], conta que Trump queria aumentar o bloqueio total a Cuba, iniciar uma política de ataque em laboratórios de fentanil no México e derrubar Maduro, na Venezuela.Trump continua tentando, em parte, impor esta agenda. Mas ele chega frustrado com a América Latina, pelo que não conseguiu fazer no seu primeiro mandato.Além disso, seu nível de desinteresse pela região naquele momento foi total. Ele foi o primeiro presidente, em mais de 60 anos, a não fazer nenhuma visita oficial a um país latino-americano. Ele só compareceu à cúpula do G20 na Argentina, em 2018.Acredito que iremos ver esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações no governo.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Para Tokatlian, o retorno de Trump ao poder traz um componente de revanche contra a América Latina.BBC News Mundo – O sr. escreveu que, com o regresso de Trump, observamos a volta da Doutrina Monroe, “a América para os americanos”. A disputa pela América Latina agora é com a China, no lugar da Europa?Tokatlian – Trump retoma a Doutrina Monroe, mas com um detalhe.Quando os Estados Unidos instrumentalizaram esta ideia, seu objetivo era evitar militarmente a expansão da Europa rumo às suas ex-colônias. O desafio era militar.Agora, no caso da influência da China, não existe nenhuma expansão militar chinesa. Na verdade, o que observamos é um participante que ingressa e se projeta na América Latina, com recursos, investimentos, assistência e presença.Por isso, se Trump quiser aplicar à China uma nova versão da Doutrina Monroe, como não há uma ameaça militar direta de Pequim, ele enfrenta um “dilema de recursos e compromissos”.Mas os americanos exigem compromissos sem oferecer recursos. Eles querem que os países da América Latina os sigam sem que eles coloquem um dólar, o que é um equívoco absoluto e pode causar muitos danos.À medida que aumentar a disparidade entre poucos recursos e mais compromissos, Washington irá aumentar as retaliações, recorrendo mais à ameaça da força e jogando no limite da chantagem.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Existe forte rejeição no Panamá à posição de Donald Trump sobre o canal.BBC News Mundo – A reivindicação do Canal do Panamá por Trump vai nesta direção?Tokatlian – Sim, mas o que Trump diz sobre o papel da China no Canal do Panamá é falso.Trump afirma que um dos terminais no Pacífico e outro no Atlântico são controlados por uma empresa chinesa. Mas os dois outros grandes terminais são operados por capital ocidental. Ou seja, o canal não está sob o controle da China.Além disso, os Estados Unidos nunca tiveram problemas com o Panamá a este respeito. Mais de 40% das suas exportações para a Ásia cruzam o canal, que sempre funcionou e operou sem nenhuma dificuldade.É preciso recordar que o Panamá mantinha relações diplomáticas com Taiwan até o ano de 2017, quando decidiu rompê-las para estabelecer relações com a República Popular da China. Esta foi uma mudança muito importante do ponto de vista de Washington.Isso significa que o canal foi dominado pelos chineses? Não. Isso quer dizer que Washington deveria ter feito muito mais para recuperar sua influência e projeção no Panamá.BBC News Mundo – Então por que o sr. acredita que Trump coloca este tema na mesa de discussões?Tokatlian – Acho que, aqui, é preciso verificar se existem interesses particulares de amigos de Trump no Panamá, porque a China não afetou a neutralidade do canal, nem fez nada para colocar em xeque o eventual aumento de investimentos americanos.Por isso, presumo que, aqui, entra o mundo dos negócios. Se compreendermos este quadro, ficará mais claro que, por trás de uma suposta rubrica geopolítica estratégica, o que existe é uma disputa por parcelas de negócios.Por isso digo para não olharmos apenas para Washington e Nova York ao analisar os Estados Unidos.É preciso também observar a Califórnia, onde estão as empresas de tecnologia que, nesta última corrida eleitoral, fizeram um movimento massivo e decisivo a favor de Trump, e para a Flórida, porque este Estado ocupa um lugar inusitado neste novo gabinete.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Os executivos das principais empresas de tecnologia presenciaram a posse de Donald Trump para seu segundo mandato.BBC News Mundo – No seu último livro, o sr. descreve a América Latina não como irrelevante para os Estados Unidos, mas como uma região que perdeu gravitação. O que significa isso e qual é a resposta da América Latina a esta posição de Trump?Tokatlian – A América Latina é uma região com menos gravitação, porque seu peso global é menor do que era 50 anos atrás.Mas esta perda de gravitação não significa que ela seja irrelevante, pois é uma região rica em minérios, hidrocarbonetos e alimentos.Existem muitos atributos que, se funcionassem em associação e não unilateralmente, nos dariam pelo menos alguma capacidade de negociação. Mas não existe uma posição regional frente aos Estados Unidos, já que vivemos a maior fragmentação e fratura política da América Latina desde a década de 1960.A América Latina está totalmente fragmentada. Nossos mecanismos de associação não funcionam. O Mercosul vive encalhado, a Aliança do Pacífico deixou de existir e a Celac não chega a consensos.Por isso, presumo que, ante os Estados Unidos, observaremos mais políticas bilaterais, ou seja, Argentina com os Estados Unidos, Brasil com os Estados Unidos, Chile com os Estados Unidos – e não regionais, o que favorece Trump.BBC News Mundo – O sr. costuma dizer que, na América Latina, existe um país que mantém posições políticas diferentes do restante da região: o México. Como o sr. vê as relações deste país com Donald Trump?Tokatlian – As relações dos Estados Unidos com o México foram, são e serão fundamentais.O México é o parceiro comercial mais importante dos Estados Unidos. Sua relação bilateral, em termos de intercâmbio comercial, é de US$ 807 bilhões (cerca de R$ 4,8 trilhões) por ano. Os Estados Unidos não mantêm este tipo de intercâmbio com os outros países da América Latina.Mas, além deste tema, existe o fentanil, o narcotráfico, a deportação dos migrantes mexicanos e da América Central e a declaração dos cartéis como sendo organizações terroristas.Neste sentido, acredito que o México tentará proteger a relação, pois tem muito a perder. Não é nenhuma novidade.Insisto que é uma continuidade. É preciso ver se o México muda de posição, não os Estados Unidos.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, O combate ao narcotráfico é um dos principais pontos nas relações entre os Estados Unidos e o México.BBC News Mundo – Em relação ao México, Trump assinou uma ordem executiva que designa os cartéis e as gangues criminosas como organizações terroristas. O que isso significa?Tokatlian – Isso significa que haverá uma pressão maior sobre o México, porque El Salvador já está fazendo sua parte de forma brutal. Mas esta mensagem também se dirige à presença dessas gangues no território americano.Trump identificou organizações mexicanas, salvadorenhas e uma venezuelana, mas não acrescentou os grupos armados colombianos, que poderiam ter sido incluídos na denominação geral de narcoguerrilhas. Por isso, inicialmente, o peso específico é em relação ao México.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, O presidente da Argentina, Javier Milei, compareceu à posse de Donald Trump.BBC News Mundo – Isso dará a Trump o poder de avançar sobre outros países?Tokatlian – Imagino que o que Trump irá fazer será perseguir de forma mais dura estas organizações dentro dos Estados Unidos.Mas não o vejo tomando uma ação de ataque com drones ou destruindo laboratórios no México. Se ele fizesse isso, acredito que estaria cruzando uma fronteira inédita na América Latina e, particularmente, nas relações com o México.BBC News Mundo – Como o sr. analisa as relações entre Donald Trump e o presidente argentino Javier Milei? Milei se aproxima de Trump por afinidade pessoal ou porque atende aos interesses da Argentina?Tokatlian – Milei é um presidente que se interessa mais pelas relações pessoais do que pelas relações entre os Estados.Trump também funciona assim. Ele é um homem de acordos e não de regras. Por isso, existe proximidade entre os dois.Existe aqui um núcleo de coincidências próprio de dois estilos que, apesar das nuances, são muito semelhantes. E eles também estão unidos por convicções ideológicas similares e pela conveniência.Esta conveniência é a intenção de fazer com que o projeto econômico interno da Argentina funcione. Ou seja, que o Fundo Monetário Internacional despeje mais recursos na Argentina e que o país passe a ser atraente para os capitais internacionais, especificamente norte-americanos.Nesta relação, existe uma mistura de convicção e conveniência pessoal para preservação de um projeto político.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Tokatlian acredita que Donald Trump irá testar diversos instrumentos para lidar com Nicolás Maduro e a questão venezuelana.BBC News Mundo – Por fim, Trump insinuou, na noite da sua posse, que os Estados Unidos podem deixar de comprar petróleo da Venezuela porque “não precisa dele”. Como o sr. vê as relações com Nicolás Maduro?Tokatlian – A Venezuela é o quarto maior exportador de petróleo para os Estados Unidos. Dizer que seu petróleo é irrelevante é relativo.De qualquer forma, não acredito que se trate apenas do petróleo. Eu diria que ele irá tentar diversos instrumentos.Trump também precisará definir o que fazer com Edmundo González [candidato de oposição à presidência da Venezuela, que se declarou vencedor das últimas eleições].O que os Estados Unidos fizeram, durante o primeiro mandato de Trump, com Juan Guaidó [autoproclamado presidente venezuelano em 2019] foi um fracasso. Se quiserem fazer novamente o mesmo, o risco de um novo fracasso é alto.Por isso, eu diria que devemos dar um passo de cada vez, observando gesto após gesto e entendendo que os Estados Unidos com Trump sempre irão combinar incentivos e sanções, não apenas praticar coerção.



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