Investigação da trama golpista aponta plano de interferir na PF para contestar resultado da eleição e tirar autonomia de delegados

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A investigação sobre a trama golpista apontou que dois militares tentaram usar a Polícia Federal para contestar o resultado das eleições de 2022, quando Jair Bolsonaro foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva. De acordo com a PF, uma organização criminosa atuou por um golpe de Estado, o que incluiu um planejamento que previa os assassinatos de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

A iniciativa de envolver a PF no questionamento às urnas eletrônicas foi identificada em uma conversa interceptada entre os generais Mário Fernandes, então número dois da Secretaria-Geral da Presidência, e Roberto Criscuoli. Os dois oficiais da reserva defenderam a ida de um hacker à Superintendência da PF do Distrito Federal para denunciar supostas irregularidades na apuração, dois dias após o segundo turno. Conforme as investigações, a ideia era lançar suspeição sobre o processo eleitoral com um instrumento institucional — a abertura de um inquérito.

O plano não foi adiante, porque, segundo as apurações, a PF não detectou nada de relevante que validasse a instauração de uma investigação. Ao GLOBO, o ex-superintendente da PF no DF Victor Cesar dos Santos, hoje secretário de Segurança do Rio, afirmou que foi procurado pelos militares para colher o depoimento do hacker, adotou o “procedimento normal” e o caso não prosseguiu por ausência de crime.

— Eles falaram comigo. O cara seria um hacker que faria uma denúncia. A gente designou dois peritos para acompanhar a oitiva. Procedimento normal: eles tomaram a declaração e, no final, me ligaram: “Chefe, não vimos crime nenhum, o cara não falou nada com nada”. Como não tinha crime, mandei para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral Eleitoral), porque falava sobre sistema. Para mim, foi uma ocorrência normal — explicou o delegado da PF, que completou: — Se eu instauro inquérito, faria um barulho muito grande. Não sou irresponsável.

Procurada, a defesa do general Mario Fernandes não quis se pronunciar. O militar está preso preventivamente desde a última semana. O general Criscuoli não se manifestou.

Mensagem indica contato com Torres

Nas mensagens, Fernandes chega a dizer a Criscuoli que acionou o então ministro da Justiça, Anderson Torres, que também é delegado da PF, para intervir no caso. A Polícia Federal é subordinada à pasta. Os dois demonstram descontentamento em razão de a corporação não ter dado atenção à denúncia.

“Eu também não gostei dessa decisão e fiz contato direto (com o superintendente do DF), falei com o ministro Anderson. Ele interviu diretamente e colocou um cara dele lá”, diz o general no chat.

Em seguida, Fernandes dá a entender que esse depoimento fazia parte de uma “estratégia” para questionar o resultado das urnas sem envolver Bolsonaro.

“Então qual é a intenção? É muita denúncia e, para blindarem ao máximo o presidente, que parece ter optado por uma outra estratégia. Eles pediram que fizesse o registro da denúncia lá. O ministro da Justiça já me garantiu que ele mesmo vai assumir esse caso”, afirmou o general na mensagem.

O ex-superintendente disse que não recebeu nenhuma ligação de Torres ou do diretor-geral da PF para pressioná-lo a dar prosseguimento ao caso.

Procurada, a defesa de Torres não se pronunciou.

Na visão dos investigadores, esse episódio revela que a atuação dos militares golpistas não se resumiu apenas à movimentação dentro da caserna, mas a um “contexto mais amplo e sistemático”, conforme o relatório. A PF investiga núcleos golpistas que teriam sido arregimentados dentro de diferentes órgãos públicos com o objetivo de manter Bolsonaro na cadeira presidencial.

No relatório tornado público nesta quarta-feira, a PF cita um outro episódio que se relaciona à tentativa de interferência do governo Bolsonaro na corporação. Anotações encontradas com o delegado, deputado federal e ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem (PL-RJ) revelam que ele propôs a Bolsonaro tirar a autonomia de delegados federais e aumentar o “poder e a influência” do diretor-geral da PF sobre investigações sensíveis. A informação aparece em um documento de texto que foi criado em 2020 e atualizado pela última vez em 2023. Durante o governo passado, Ramagem, inclusive, foi escolhido para assumir o posto máximo da instituição, mas a indicação foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal.

“O contexto das anotações acima indica que Ramagem sugestiona ao então presidente Jair Bolsonaro que interfira junto a administração da Polícia Federal para restringir a atuação funcional de delegados da Polícia Federal junto a inquéritos que tramitam no Supremo Tribunal Federal”, anotou a PF, no relatório.

“Ramagem também indica que a Polícia Federal deveria questionar as decisões judiciais consideradas ‘ilegais’ ou ‘inconstitucionais’ que viessem do STF”, completa o documento.

As investigações apontam o envolvimento de militares das Forças Armadas e agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal na trama golpista. Cada grupo atuaria em uma frente e desempenharia uma função dentro dos planos, que estavam em discussão nos Palácios do Planalto e Alvorada, onde Bolsonaro trabalhava e morava, respectivamente.

Por enquanto, a PF indiciou três servidores da própria corporação — os delegados Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin e hoje deputado federal; e o agente Wladimir Matos Soares. Este último era um dos coordenadores da “segurança fixa” de hotéis do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a transição de governo. Segundo as investigações, ele fornecia informações confidenciais a um assessor de Bolsonaro sobre a equipe e o local onde o petista estava hospedado no fim de 2022.

À PF, ele contou que foi recrutado por um outro agente da PF a compor uma equipe que faria a segurança do Palácio do Planalto e do então presidente Jair Bolsonaro, “caso ele não entregasse a faixa presidencial”. Soares já havia trabalhado na escolta de Bolsonaro durante a campanha de 2018.

Apesar de ter entregue o relatório final, com 884 páginas, ao Supremo Tribunal Federal na última semana, os investigadores afirmam que ainda podem fazer complementos ao texto e novos indiciamentos devem sair nos próximos dias.

“Em relação a outras pessoas em torno do fato investigado, em atendimento ao disposto no art. 23, parágrafo único a Lei 12.850/2023, visando garantir o pleno exercício da ampla defesa, o juízo técnico-jurídico de indiciamento será realizado após as respectivas oitivas”, diz o relatório, referindo-se à necessidade de colher o depoimento de todos suspeitos antes de atribuir os crimes.

O ex-presidente já foi alvo de um inquérito sobre suposta interferência na PF. A investigação foi aberta em 2020 a partir de declarações do ex- ministro da Justiça Sergio Moro, que acabou deixando o cargo em seguida. Na época, ele acusou o antigo chefe de tentar intervir no comando da PF para obter acesso a relatórios de inteligência e informações sigilosas envolvendo investigações em curso.

Em 2022, a PF concluiu que Bolsonaro não cometeu crime e a então vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, enviou ao Supremo um parecer pedindo o arquivamento do inquérito — o que não aconteceu até agora. O relator do caso é o ministro do STF Alexandre de Moraes, que também conduz a investigação sobre a trama golpista.



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