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As milhares de páginas do inquérito mostram como os indiciados se aproveitaram da ausência de normas. As estratégias eram alinhadas em plataformas fechadas de mensagem, como WhatsApp e Signal, e depois ganhavam tração em redes abertas, a exemplo do X e do Facebook. A PF indiciou Bolsonaro e outras 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito e organização criminosa.
De acordo com a investigação, um dos seis núcleos do golpismo era dedicado à desinformação, com o uso de táticas comuns na caserna. Outro grupo, com atuação conjunta, tinha a tarefa de inflamar os militares. Diante das conexões, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou o compartilhamento do inquérito do golpe com as investigações que tratam das milícias digitais e da disseminação de fake news.
“Os investigados empregaram seus conhecimentos adquiridos na atividade militar para, em desvio de finalidade, realizar ações com o objetivo de incitar as Forças Armadas contra os Poderes constituídos e criar o ambiente propício para o golpe de Estado”, resume a PF no inquérito.
Um dos exemplos é a atuação do general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, que orientou ataques ao general Freire Gomes, à época comandante do Exército, e ao tenente-brigadeiro do ar Baptista Júnior, então chefe da Aeronáutica — ambos se recusaram a embarcar na trama golpista.
“Senta o pau no Baptista Júnior. Traidor da pátria. Inferniza a vida dele e da família”, escreveu Braga Netto a um interlocutor em 15 de dezembro de 2022. Dias depois, Baptista Júnior foi amplamente criticado por bolsonaristas nas redes sociais, chamado de “traidor da pátria” e “comunista”. A investigação mostra que, naquele período, os interessados no golpe começavam a perder fôlego diante da recusa da maior parte da cúpula das Forças e buscavam estratégias de pressão com a intenção de reverter o quadro.
Braga Netto negou qualquer plano de golpe e disse que a “verdade será esclarecida respeitado o devido processo legal”.
Freire Gomes também foi alvo de uma ação orquestrada, como indica o inquérito. Em depoimento, ele disse que recebeu ataques pelas redes, assim como familiares — uma mensagem de Braga Netto o chama de “cagão”. Já o coronel Corrêa Netto, também indiciado, difundiu cinco fotos associadas a nomes de generais da ativa que estavam se posicionando contra o golpe. “Quem dera fossem só esses”, enviou a um interlocutor, em 15 de novembro de 2022.
No dia seguinte, ao menos um perfil no X publicou as imagens com os dizeres: “Dos dezenove generais, estes cinco canalhas não aceitam a proposta do povo. Repasse para ficarem famosos”.
A defesa de Corrêa Netto disse que aguardará a manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR) para comentar.
Enquanto buscavam adesão, os militares golpistas elaboraram uma carta como instrumento de pressão contra os integrantes da cúpula que se opunham à ofensiva — Freire Gomes chegou a dizer que prenderia Bolsonaro caso o golpe fosse adiante, como revelou a PF. O documento foi discutido em reuniões, compartilhado via mensagens e depois espalhado em redes abertas: houve uma petição no Facebook buscando apoio e publicações no X.
A carta também foi publicada em um site de petições on-line. Em uma conversa com o tenente-coronel Mauro Cid, o coronel Anderson Moura encaminha o link e escreve: “Disparado”. Os dois foram indiciados pela PF.
Depois que se tornou alvo de investigações, Cid fechou um acordo de delação premiada com a PF e deu informações sobre como integrantes do governo e das Forças Armadas se articularam para manter Bolsonaro no poder. Procurada, a defesa de Moura não se manifestou.
A PF apontou ainda o papel do influenciador Paulo Figueiredo Filho na divulgação de informações falsas para incitar militares a se voltarem contra os comandantes. De acordo com a investigação, ele deu ampla publicidade à carta “para criar a falsa percepção de que haveria um alinhamento das Forças Armadas ao golpe”. Figueiredo afirmou que a conduta “criminosa” atribuída a ele é relatar os acontecimentos no Alto Comando.
O inquérito mostrou também que um integrante do esquema “paralelo” na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) comandava um grupo voltado à disseminação de desinformação e ataques a ministros do STF. Chamado de “Grupo dos Malucos”, tinha como função principal, segundo a PF, questionar a credibilidade do sistema eleitoral, insuflando a tentativa de golpe.
Mensagens interceptadas mostram que ele orientava os demais membros sobre os ataques que deveriam ser feitos. ‘‘Senta o dedo para galera’’, escreveu, ao determinar a disseminação de uma mentira relacionada a um familiar do presidente do STF, Luís Roberto Barroso. A PF ressalta que a conversa mostra que “os servidores tinham consciência que as notícias eram falsas”.
‘Falência do sistema’
Enquanto as novas revelações do inquérito vêm à tona, Moraes e outros ministros do STF vêm defendendo a responsabilização das plataformas, tema do julgamento em curso no STF.
— O 8 de Janeiro demonstrou a total falência do sistema de autorregulação das redes — declarou Moraes na sessão de quinta-feira.
O julgamento discute o modelo de responsabilização das plataformas pelo conteúdo de terceiros. A análise teve origem em dois casos que envolvem o Facebook e o Google, sobre uma dona de casa que descobriu um perfil falso em seu nome para divulgar ofensas e uma comunidade criada para proferir ataques contra uma professora.
As empresas alegam que já dispõem de mecanismos de moderação e remoção de conteúdos, sem que haja necessidade de uma regra que permita a remoção sem decisão judicial. Além disso, citaram o esforço de autorregulação, com investimento em tecnologia para combater crimes como pedofilia e discurso de ódio. Procurada, a Meta, também dona do WhatsApp, disse que atuou para ajudar a proteger a democracia “antes e em 8 de janeiro”. O Google não fez acréscimos ao posicionamento do julgamento. O Signal não se manifestou.
— Caso o STF declare inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil, menos conteúdos ofensivos vão circular, porque as plataformas vão precisar ter mecanismos que evitem a disseminação — avalia o advogado João Quinelato de Queiroz, do Instituto Brasileiro de Direito Civil.
Professor da FGV Direito Rio e doutor em Direito Civil, Daniel Dias acrescenta que hoje há uma “blindagem” às plataformas:
— Se o artigo 19 cair, é um reconhecimento de que as empresas precisam ser ativas no combate à desinformação e à violação tanto de direito de pessoas quanto do Estado democrático de Direito.